Crítica: A Substância

The Substance, Reino Unido/França, 2024



Trailer · Letterboxd · IMDB · RottenTomatoes

★★★★☆


Em primeiro lugar, eu gostaria de deixar claro que não recomendo uma sessão de A Substância para ninguém.

A combinação de terror psicológico com terror corporal (ou body horror) que a diretora Coralie Fargeat coloca sobre a tela é suficiente para deixar o espectador se contorcendo na poltrona durante a maior parte das 2h20m da projeção. Dito isso, a cineasta é muito bem-sucedida em passar sua elaborada mensagem, ainda que sua metodologia seja radical e prolixa. O gore é uma interessante (talvez, necessária) escolha estética, mas o tempo de duração poderia ser economizado.

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Talvez algumas pessoas vão dizer que a mensagem de A Substância seja óbvia e simplista. Porém, é interessante ver como Fargeat apresenta sua temática em didáticas camadas e satiriza mecanismos sociais, econômicos e psicológicos de forma violenta e visceral. Enquanto a história parece ser uma espécie de Cisne Negro com toques de Black Mirror, a linguagem deixa a impressão de ser uma continuação do trabalho da diretora Julia Ducournau, responsável por Raw e Titane.

O momento no qual a famosa atriz Elisabeth Sparkle (Demi Moore) percebe que sua idade se tornou um problema para o executivo de TV Harvey (Dennis Quaid) não é nada estranho para quem acompanha a indústria do entretenimento. Assim como no caso da própria Demi Moore, é comum ver atrizes que aparentemente estavam no topo da carreira simplesmente pararem de trabalhar quando atingem os 40 ou 50 anos de idade. De repente, as propostas param de chegar aos seus agentes e elas desaparecem “inexplicavelmente” das telas.

Mas essa é apenas a primeira camada de A Substância. Apresentadora de um programa fitness, fica claro que Sparkle criou uma carreira não apenas com base em seu talento, mas também com base em sua beleza. Para o olhar masculino, sua principal qualidade é que ela é “bonita”; e porque ela é “bonita”, as pessoas querem e gostam de vê-la; e porque as pessoas gostam de vê-la, a indústria utiliza a sua imagem para vender produtos e para alavancar a audiência. Isso até ela ser considerada “velha demais” para ter sua imagem comercializada dessa forma.

Veja que aqui a palavra “bonita” se refere a um tipo bem específico de beleza, como se a única forma de beleza feminina que existisse fosse a de mulheres magras que aparentam estar em seus vinte e poucos anos de idade, no máximo.

A próxima camada está na reação da protagonista. Ela poderia muito bem entender que esse é o fim de um (injusto) ciclo e tentar capitalizar sua fama e reconhecimento de alguma outra forma. Porém, não é tão fácil para ela abandonar a “beleza” responsável por parte de seu sucesso. Dado que tudo o que ela construiu em sua vida foi em cima da fama e do reconhecimento, ela acredita que não lhe sobra mais nada a não ser solidão e anonimato sem a sua brilhante imagem pública.

Ser a bela e bem-sucedida atriz que aparece no cinema e na TV se tornou parte inerente de sua identidade. Abandonar isso seria como abandonar a si própria, ou como um ato de autodestruição. E é por esse motivo que ela aceita a proposta da misteriosa organização que lhe oferece “a substância”. O medicamento serve como uma metáfora para os invasivos procedimentos estéticos aos quais muitas mulheres (e alguns homens) se submetem na tentativa de se encaixarem em artificiais e irreais padrões de beleza.

a substância 2

O que “a substância” faz é criar uma cópia mais jovem e mais atraente de Sparkle, chamada de Sue (Margaret Qualley). Porém, essas duas versões de Elisabeth Sparkle não podem ficar ativas simultaneamente, funcionando em turnos de sete dias cada. Dessa forma, durante os sete dias nos quais Sue está vivendo a vida ao máximo e recuperando o sucesso, o corpo de Elisabeth precisa ficar em animação suspensa. Da mesma forma, para Elisabeth ficar ativa, o corpo de Sue precisa ficar inativo.

Uma vez que elas não compartilham as memórias criadas a partir do momento da “duplicação”, não demora até que as prioridades de Sue e Elisabeth comecem a divergir. Por voltar a ser convencionalmente atraente, Sue se deixa levar pelo narcisismo típico da juventude e já não se importa com o bem-estar e com as necessidades de Elisabeth. Sendo jovem e bonita, Sue acaba se tornando apenas mais uma pessoa que considera Elisabeth irrelevante e ultrapassada.

Mas veja que a personalidade de Sue é apenas uma cópia da personalidade de Elisabeth. O desprezo e a violência que elas direcionam uma à outra representam os conflitos internos presentes em muitas pessoas. O que o filme tenta representar com isso, inclusive fazendo uso de cenas chocantes de violência, é o quanto as pessoas estão dispostas a destruírem a si próprias (ou a agredirem os próprios corpos) para se encaixarem em padrões de beleza.

A trama de A Substância também expõe as motivações por trás desse tipo de comportamento. Não é tão simples quanto dizer que Elisabeth é uma pessoa superficial. A questão é que ela acredita que para ser amada e ter a atenção das pessoas ela precisa ser jovem, bonita e “gostosa”. Isso não é algo sobre o qual ela reflete, mas apenas algo no qual ela inconscientemente acredita, resultado de uma cultura, de uma mídia e de mecanismos psicológicos (veja o vídeo no final desse artigo) que priorizam a imagem em detrimento do conteúdo.

Ao fim, quando os “procedimentos estéticos” aos quais tanto Elisabeth quanto Sue recorreram resultam em algo monstruoso, as próprias pessoas que elas estavam tentando agradar (sejam os nojentos executivos da indústria do entretenimento ou o público em geral) se voltam contra elas. De repente, o que até determinado momento era uma “máscara” aceitável se torna algo digno de repulsa e rejeição. Na vida real, é comum as pessoas ficarem chocadas com os resultados das cirurgias plásticas de algumas celebridades, a ponto de existirem muitos artigos listando casos de “fracasso”.

Com a ajuda de uma performance arrebatadora de Demi Moore, A Substância analisa todos os mecanismos que levam até esse momento de “fracasso” estético. Em busca de “fórmulas mágicas” para tentar garantir que continuem relevantes e que merecem ser amadas, algumas pessoas podem perder uma perspectiva mais ampla da vida e passam a focar em um único critério para, teoricamente, lhes garantir a felicidade.

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