Black Mirror e os Terrores da Condição Humana


* Contém SPOILERS da série Black Mirror

Apesar de se tornar famosa por episódios que exploram os possíveis efeitos da tecnologia sobre o futuro da humanidade, Black Mirror também tem em suas origens episódios que levam os efeitos das mídias de massas até as últimas consequências. Os dois primeiros episódios da primeira temporada, Hino Nacional e Quinze Milhões de Méritos, abordam justamente esse tema, mostrando cenários nos quais a voracidade das pessoas por entretenimento têm resultados perturbadores.

Antes de criar Black Mirror, o roteirista Charlie Brooker já era o responsável por várias produções que analisavam de forma satírica os fenômenos midiáticos do momento (séries, filmes, vídeos games, reality shows, etc.), os acontecimentos nacionais do Reino Unido e a cobertura jornalística sobre eles. Mais recentemente, o autor usou o mesmo estilo em duas retrospectivas anuais para a Netflix: 2020 Nunca Mais e 2021 Nunca Mais.

Agora, a sexta temporada de Black Mirror foca nos efeitos das mídias de massas durante a maior parte de seus cinco episódios. Há apenas duas grandes histórias com fortes elementos tecnológicos (A Joan é Péssima e Beyond the Sea), e mesmo assim uma delas (A Joan é Péssima) também está intimamente ligada a fenômenos midiáticos. O resultado é uma das temporadas mais inquietantes da série.

O demônio da TV

Vamos começar pelo último episódio da temporada, Demônio 79. Ambientado em 1979 e claramente inspirado em filmes de terror dos anos 1970, à primeira vista esse capítulo parece ser completamente diferente de tudo o que a série fez no passado. Superficialmente, o que vemos é uma macabra trama sobrenatural, na qual o demônio Gaap (Paapa Essiedu) vem do inferno para convencer a assistente de vendas Nida (Anjana Vasan) a cometer três assassinatos, com a justificativa de que isso evitará o fim do mundo.

Essa poderia ser apenas uma história sobrenatural, não fosse pelo fato de que ela nos lembra de vários casos reais de assassinos que justificaram seus crimes dizendo que estavam recebendo ordens do “diabo”. Um desses casos é livremente dramatizado no filme Invocação do Mal 3: A Ordem do Demônio, no qual a defesa do assassino tenta convencer um juri de que ele estava “possuído” quando cometeu o crime.

Em outras situações, os assassinos disseram que receberam as ordens de demônios que apareceram como personalidades da TV ou animais de estimação. No caso de Nida, Gaap aparece como um dos vocalistas da banda Boney M. No caso do “filho de Sam”, o assassino David Berkowitz disse ter recebido ordens demoníacas através do cachorro Sam, que pertencia ao seu vizinho. Berkowitz, que tinha uma certa obsessão com a atenção midiática, admitiu posteriormente que essa história “demoníaca” era uma farsa.

black mirror poster 6 1

Mas Demônio 79 parece mais interessado em explorar a relação entre as mídias de massas, as questões sociais e as doenças mentais. Por ser uma descendente de imigrantes na Inglaterra dos anos 1970, boa parte do que Nida vê diariamente na televisão representa ameaças a sua existência. Não se trata apenas das possibilidades de apocalipse nuclear trazidas pela Guerra Fria, mas também dos discursos xenófobos de políticos de extrema-direita que não gostam de pessoas como ela.

As hostilidades que ela encontra em seu dia a dia nas ruas e no trabalho também se juntam a essas ameaças. Se ela realmente sofre de algum tipo de esquizofrenia, faz sentido que a alucinação que guia sua violenta reação venha no formato de uma das figuras midiáticas que não lhe oferecem perigo. No final, enquanto o mundo acaba, ela acompanha Gaap em seu banimento do inferno e rumo a uma eternidade no vazio.

Mas essa é a história que ocorre em sua mente e que ela conta para si própria. O mais provável é que, na vida real, Nida aproveitou a saída dos policiais da sala de interrogatório para, de alguma forma, tirar a própria vida. Diante da dissonância cognitiva causada pelo fato de que o mundo não acabou à meia-noite, ela precisa recalibrar seus delírios e acreditar em um “final feliz” para ela e Gaap, evitando que ela tenha que lidar com a realidade de sua situação.

Demônio 79 é mais um episódio de Black Mirror que utiliza o “garfo de dois dentes” como parte de sua simbologia. Além de aparecer no amuleto que invoca Gaap, o símbolo também está em um flashforward que mostra o futuro da Inglaterra sob um líder fascista. Anteriormente, o formato apareceu como logos no episódio especial Bandersnatch e no episódio da segunda temporada Urso Branco, que também explora os terrores das mídias de massas.

black mirror symbol símbolo 1As vidas dos outros

Já os episódios Loch Henry e Mazey Day voltam suas atenções para a espetacularização do sofrimento de pessoas reais.

Em Mazey Day, a exploração do sofrimento de celebridades e de outros tipos de pessoas públicas como fonte de entretenimento tem consequências fatais para alguns paparazzis. Diante de suas lentes, é como se os famosos não fossem pessoas reais, mas sim personagens que existem em prol do entretenimento de um público que sempre quer mais.

Essa desumanização já está presente na cultura da “fofoca”, quando as pessoas se divertem acompanhando os acontecimentos das vidas de pessoas próximas como se estivessem acompanhando uma série de TV ou uma novela. Como somos animais sociais, é bem provável que a fofoca teve algum importante papel evolutivo, já que as primeiras histórias que contamos foram as histórias que ocorriam ao nosso redor, com as pessoas com quem tínhamos contato.

Porém, quando essa característica se encontra com as mídias de massas, muitas situações começam a sair de controle. No filme Não! Não Olhe!, dois irmãos colocam a própria segurança em risco para capturar imagens que podem torná-los famosos no mundo inteiro. No ato final, o plano dos protagonistas é seriamente ameaçado por uma figura que é representada de forma sinistra, como um ser que aparece do nada e é desprovido de humanidade: um paparazzi.

black mirror 6 2

Um dos episódios mais chocantes da sexta temporada de Black Mirror é Loch Henry. A trama explora o terror provocado pela nova onda de filmes, séries e podcasts inspirados em crimes reais. As produções do tipo true crime representam outro desdobramento da nossa necessidade de tratar as vidas alheias como fonte de entretenimento. Aqui, as consequências são ainda mais danosas.

Inicialmente, as dramatizações ou documentários sobre crimes reais podem até se justificar pela relevância jornalística. Porém, a depender do nível de sucesso alcançado, os eventos representados podem ser banalizados e a humanidade dos envolvidos pode ser completamente esquecida.

De repente, casos horríveis de tortura e assassinato se tornam fonte de renda e sucesso para alguns dos envolvidos e para muitos dos interessados. O sofrimento das vítimas e de seus familiares ficam em último plano, enquanto os assassinos são alçados ao status de celebridades. No pior caso, essas produções true crime podem até inspirar novos crimes, cometidos por pessoas que sofrem de distúrbios mentais e estão em busca de fama e reconhecimento.

Por causa do já citado caso do “filho de Sam”, o estado de Nova York e muitos outros estados dos EUA aprovaram leis proibindo que criminosos e seus familiares obtivessem lucros a partir dos relatos de seus crimes. David Berkowitz havia recebido propostas financeiras de várias editoras interessadas em publicar sua história, o que poderia lhe render grandes quantidades de dinheiro.

Mais recentemente, a minissérie da Netflix Dahmer: Um Canibal Americano se tornou um fenômeno mundial de audiência ao dramatizar os horríveis crimes cometidos por Jeffrey Dahmer. Os familiares das vítimas, que sequer foram consultados antes da produção, afirmaram que se sentiram desrespeitados e que estão revivendo traumas por causa da série. Enquanto isso, o visual de Dahmer chegou a ser utilizado como fantasia de Halloween no ano de lançamento da série.

Black Mirror: Streamberry

A Netflix também é o alvo em A Joan é Péssima, que é o primeiro episódio da sexta temporada de Black Mirror. Nele, o fictício serviço de streaming Streamberry cria uma série com base nos dados coletados da protagonista Joan (Annie Murphy), revelando publicamente seus maiores segredos e virando sua vida de cabeça para baixo.

A premissa nos lembra imediatamente do documentário (também da Netflix) O Dilema das Redes, no qual especialistas e figuras da indústria alertam para os perigos das redes sociais, seja pelo caráter viciante desses serviços ou pelos muitos dados coletados pelos sites e aplicativos.

A produção revela que o algoritmo do Facebook já é capaz de influenciar o humor das pessoas e já sabe que o tipo de conteúdo que gera mais engajamento é conteúdo que gera emoções negativas.

Para deixar claro o perigo da coleta de dados, o documentário afirma que é se como esses serviços tivessem um preciso modelo do comportamento de seus usuários, representando isso como um modelo 3D da pessoa para facilitar o entendimento do espectador. A Joan é Péssima vai bem mais além, com uma inteligência artificial sendo capaz de reproduzir aproximadamente o dia a dia de Joan enquanto lhe dá a aparência da atriz Salma Hayek.

O episódio também realça como os serviços de streaming prejudicam tanto os espectadores quanto os artistas envolvidos nas produções, ficando todos reféns de contratos e termos de serviço que sempre beneficiam as empresas. Não é por acaso que a atual greve de roteiristas de Hollywood foi motivada em grande parte pelas plataformas de streaming, que vêm cada vez mais precarizando o trabalho dos autores.

Black Mirror: Uma Laranja Mecânica

Mais chocante que Lock Henry, talvez Beyond the Sea seja o episódio mais angustiante de todas as temporadas de Black Mirror. Mais uma vez, o forte aspecto tecnológico serve apenas como conduíte para alguns dos piores aspectos da natureza humana.

Ainda na primeira metade do episódio, um terrível ato de violência nos lembra tanto os momentos mais chocantes do filme Laranja Mecânica quanto os assassinatos reais cometidos pelos membros da Família Manson em 1969. A seita hippie do episódio não consegue lidar com o corpo robótico habitado pelo astronauta David (Josh Hartnett) enquanto seu corpo real está em uma longa missão no espaço.

Para eles, o androide é uma aberração, uma criação que ofende a natureza e não deveria existir. Esse tipo de posição é característica de grupos dominados pelo narcisismo, que se consideram mais especiais que quaisquer outros e se veem no direito de dizer o que é certo e errado, ou o que é aceitável e inaceitável. Eles são capazes de ver o mundo apenas sob o próprio ponto de vista. Tudo o que é diferente deles está errado e precisa ser destruído.

E é por isso que eles tiram de David não apenas o corpo robótico que o permite “estar” na Terra, mas também sua esposa e filhos.

Traumatizado e isolado na nave espacial, David se torna uma mera sombra da pessoa que ele era antes. Sua relação com seu companheiro de missão Cliff (Aaron Paul) se reduz às menores interações possíveis. Isso até Cliff lhe oferecer a oportunidade de usar seu corpo robótico para que ele possa voltar a experimentar o ambiente da Terra. David aceita, e as consequências são catastróficas.

Uma pessoa traumatizada pode se tornar tão narcisista quanto os fanáticos que assassinaram a família de David. De repente, apenas a dor e o sofrimento lhe parecem reais. Sem nada a perder e enxergando apenas o curto prazo, algumas de suas características mais tóxicas vêm à tona. Lentamente, David passa a acreditar que sua visão de mundo é mais “correta” ou “realista” que a de Cliff. Só sua própria experiência importa; só sua própria experiência é real.

A imperfeita estabilidade da vida de Cliff lhe parece uma aberração. David não apenas se considera melhor do que Cliff, mas também se considera a solução para as insatisfações de Lana (Kate Mara), esposa do colega. Quando fica claro que seus avanços jamais serão aceitos e que sua superioridade não é nada mais do que uma ilusão, tudo o que lhe resta é tentar compartilhar o seu trauma e trazer Cliff para o mesmo nível de solidão e desespero no qual ele está.

Assim como os membros da seita, ele precisa destruir aquilo o que ele se recusa a aceitar.

Enquanto vários episódios das temporadas anteriores exploraram as implicações éticas e humanitárias da inteligência artificial e de outras tecnologias, a sexta temporada de Black Mirror mergulha de cabeça na escuridão da condição humana. Dessa vez, os aspectos tecnológicos são mínimos, enquanto os estragos psicológicos são máximos.

Siga ou compartilhe: