Silverview: Uma Última Crise de Identidade

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Publicado postumamente, Silverview é mais um romance que resume muito bem a carreira do lendário autor John Le Carré, um dos maiores escritores britânicos do Século 20. Dessa vez, as crises de identidade típicas de suas histórias ocorrem dentre diversos personagens e organizações. As várias identidades e os vários conflitos do próprio autor vão aparecendo nas páginas, revelando Le Carré como um espião, um humanista, um filho ressentido, um fabricador de histórias e um traidor.

Em Londres, o espião Stewart Proctor recebe a visita da jovem Lily, que chega com seu filho pequeno, durante uma forte chuva, para entregar uma carta diretamente ao servidor público. No leste da Inglaterra, um despreparado Julian Lawndsley tenta dar um novo fôlego à livraria que ele comprou após abandonar o mundo das finanças e se mudar para uma pequena cidade litorânea. É lá que ele conhece o excêntrico Edward Avon, senhor que o ajuda com dicas e ideias para tornar o negócio relevante novamente.

Os capítulos de Silverview vão se revezando entre essas duas frentes narrativas, que parecem estar completamente separadas. Porém, a partir de determinado ponto, os nomes que aparecem em uma começam a aparecer na outra, lentamente convergindo para uma história sobre uma lealdade inquestionável e uma traição absoluta. Conforme o quebra-cabeça vai sendo montado, a duplicidade dos personagens vai ficando mais clara e os questionamentos mais incisivos.

silverview

Uma das grandes crises de identidade aqui presentes é sofrida por Proctor e por seus colegas de profissão, que questionam a relevância dos serviços de inteligência dos quais eles fazem parte. A vida deles era muito mais simples durante a Guerra Fria, quando havia um grande inimigo a ser combatido em nome dos ideais ocidentais e do futuro da humanidade. Agora, eles começam a questionar o maniqueísmo da época e a perceber algo que talvez sempre tenha sido verdade: que eles não são nada mais do que peões em um tabuleiro de interesses políticos; e que, sob o ponto de vista da História, eles não fizeram uma diferença tão positiva quanto acreditavam.

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A trama de Silverview passa por crimes cometidos por colaboradores nazistas, pela realidade da Polônia comunista e pelos horrores da Guerra da Bósnia (que podem ser vistos em filmes como Savior: A Última Guerra e Sympathy for the Devil). Além disso, o romance faz referências às mentiras contadas para justificar a Guerra do Iraque e ao posicionamento das potências ocidentais em relação ao conflito Israel-Palestina (tema que o autor já havia abordado em A Garota do Tambor, que foi adaptado na minissérie The Little Drummer Girl). Assim como o protagonista de Agent Running in the Field, Proctor começa a questionar se o traidor que ele está investigando está mais correto do que os poderes estabelecidos que ele representa.

Em determinado ponto, o narrador afirma que o traidor, um idealista que passou por diversos traumas ao longo de sua vida, pode ser considerado uma pessoa mais real do que o próprio Proctor, um espião cuja principal personalidade talvez seja a que ele usa no trabalho, e não a que ele usa com sua família. Por outro lado, o traidor em questão também tem suas diversas faces, levando uma pessoa a avisar Proctor sobre sua natureza inerente:

Um radical é um radical. Não importa se ele é um ex-comunista ou um ex qualquer outra coisa. Ele é o mesmo cara. Você não muda sua forma de pensar apenas porque sua conclusão mudou. Você altera a conclusão. É a natureza humana. Talvez seja bom você avisar isso aos seus alunos, Stewart, caso eles queiram recrutar ex-fanáticos. Sempre se lembre de quem eles eram, pois aquela pessoa ainda está lá dentro em algum lugar.

No posfácio, um dos filhos do autor fala sobre uma promessa que não pôde ser cumprida: a de completar algum eventual trabalho que o pai deixasse incompleto na ocasião de sua morte. O caçula de Le Carré afirma que encontrou Silverview já finalizado, precisando apenas de alguns toques editoriais, e se pergunta porque o pai jamais havia publicado o trabalho. Seu palpite, que ele diz ser tão bom quanto o de qualquer outro leitor, é que talvez essa história faça críticas incisivas demais aos serviços dos quais Le Carré já fez parte.

Outra possibilidade é que seja porque essa é uma de suas poucas obras que, pelos padrões de seu trabalho, terminam com um final feliz.

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