Crítica: O Túnel de Pombos

The Pigeon Tunnel, Reino Unido, 2023



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★★★★☆


Talvez o maior atrativo da longa entrevista mostrada em O Túnel de Pombos seja escutar partes da história do ex-espião e escritor David Cornwell contadas por ele próprio, em uma conversa que em muito nos lembra sua voz literária. Não há revelações bombásticas, mas apenas mais uma camada na composição do “personagem” John Le Carré, pseudônimo com o qual Cornwell se tornou famoso. Seus mais de vinte romances de espionagem reinventaram o gênero e influenciaram não apenas outras obras de ficção, mas também agentes e operações de inteligência na vida real.

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Para quem já é fã de seu trabalho, esse documentário é uma bela e envolvente homenagem. As histórias contadas aqui já foram contadas com bem mais detalhes em suas duas biografias e ao longo de suas obras de ficção. Ainda assim, há aqui reflexões e pontos de vista que Cornwell expõe de formas impressionantemente líricas e inspiradoras. Suas reflexões sobre sua vida levam o espectador a refletir sobre si próprio e sobre o caminho que todos nós traçamos ao longo dos anos.

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Para quem não conhece nem a história e nem o trabalho do autor, O Túnel de Pombos oferece uma breve e instigante introdução ao mundo de mentiras, duplicidade e traições de Le Carré. Para um ponto de vista mais completo, não basta ler suas biografias, sendo necessário mergulhar nos mundos de ficção resultantes de uma vida marcada por uma infância atípica e por um pai extremamente problemático. Vários de seus trabalhos foram adaptados para o cinema e para a TV, facilitando uma possível iniciação em sua ficção.

Como era de se esperar, a conversa sobre a trajetória de David Cornwell invariavelmente passa por sua relação com seu pai, Ronnie Cornwell. Depois que sua mãe abandonou a família quando David tinha apenas cinco anos, Ronnie passou a utilizar seus filhos como comparsas em seus golpes e esquemas para ganhar dinheiro. Se inicialmente David aprendeu a mentir e enganar para ajudar ao pai, durante sua adolescência ele teve que ser capaz de enganar o próprio Ronnie para tentar se manter afastado das práticas criminosas dele.

Dessa forma, O Túnel de Pombos transita facilmente pelas principais fases da vida do autor. De criança “golpista” a estudante de internato e universitário, sendo então recrutado e passando pelas duas principais agências de inteligência do Reino Unido. A decepção com o serviço secreto e o sucesso literário o levam então a abraçar a fama e o reconhecimento. Posteriormente, o autor se adapta e se mantém relevante mesmo após o fim da Guerra Fria, amadurecendo junto com um mundo que não era mais dividido em uma artificial dicotomia.

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O diretor Errol Morris complementa a entrevista de O Túnel de Pombos com encenações e imagens de arquivo, inclusive com trechos de entrevistas que Cornwell deu no auge do frenesi causado por seus primeiros best-sellers. Além disso, a edição e os ângulos escolhidos pelo cineasta dão um ar mais dinâmico ao material, combinando os cortes com alguns dos momentos mais dramáticos e impactantes da fala do entrevistado.

Cornwell, por sua vez, deixa a impressão de que aquela é uma conversa completamente franca e com algumas poucas limitações (como, por exemplo, sua vida amorosa). Sua atitude é a de uma pessoa completamente transparente que já não tem mais nada a esconder. Porém, quem já conhece as obras e a história do autor sabe que deixar essa impressão de sinceridade absoluta é uma das obrigações mais básicas tanto dos golpistas quanto dos espiões. O próprio autor reconhece que a verdade é algo subjetivo, que depende do ponto de vista de cada pessoa.

Para ele, diante das ficções que nós criamos para nós mesmos e para as pessoas ao nosso redor, a verdade fria e puramente factual é algo inalcançável. Isso nos lembra que esse é o autor que, durante a Guerra Fria, quando o mundo em geral via o conflito em preto e branco, apresentou uma história que trazia à tona toda a ambiguidade moral daquela “guerra”. O Espião que Veio do Frio não mostrava os agentes do ocidente como heróis moralmente superiores, mas sim como funcionários públicos dispostos a fazer coisas horríveis em nome de um questionável “bem maior”.

Quando a Guerra Fria acabou, muitos previram que escritores como Le Carré iriam ficar sem material. Porém, além de se manter relevante nas décadas seguintes ao conflito, seu trabalho volta a ter uma desagradável ressonância com a situação geopolítica corrente. Além da história sobre o conflito Israel-Palestina mostrado em A Garota do Tambor, a volta da Rússia como grande oponente do ocidente nos leva de volta para um passado que parecia superado. O próprio autor apontou esses perigos em uma de suas obras mais recentes, Agente em Campo.

Os também recentes Um Legado de Espiões e Silverview (publicado postumamente) deixam bem claras as convicções do autor e sua reação a alguns recentes eventos da política mundial. Porém, para complementar o conteúdo de O Túnel de Pombos, é muito mais interessante começar por Um Espião Perfeito e pela melancolia de O Peregrino Secreto, romance com o qual Le Carré de despediu da Guerra Fria.

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