Crítica: Glória

Glória, Portugal, 2021



Netflix · Trailer · Filmow · IMDB · RottenTomatoes

★★★★☆


Em primeiro lugar, é preciso notar a audácia dos realizadores de Glória. A primeira série portuguesa da Netflix não é nenhum mistério policial ou comédia com altas chances de agradar a todos os públicos, mas sim uma realista história de espionagem. Enquanto a referência que muitas pessoas têm desse gênero ainda são os thrillers de ação de James Bond, a trama da série está muito mais próxima da inteligente e perturbadora ficção de John Le Carré. Pessoas são friamente manipuladas, vidas inocentes são completamente destruídas e gargantas são repentinamente cortadas em meio a jogos políticos desprovidos de humanidade.

glória 1Ao fazer do espião João Vidal (Miguel Nunes) o ponto focal da trama, a série tem a oportunidade de adotar uma abordagem quase didática sobre o mundo da espionagem, ainda que não subestime a inteligência do espectador. Enquanto Vidal tenta cumprir as ordens enviadas pelos seus chefes na KGB, é possível ver os esforços de contraespionagem dos americanos para identificar quem é o infiltrado. Entre eles, há também os interesses do regime do Estado Novo em Portugal, ainda sob o comando de Antonio Oliveira Salazar e representado na série pelo PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) e por Henrique (Marcello Urgeghe), pai de João e ministro do governo.

A trama também se destaca por fazer um fantástico trabalho de contextualização, mostrando não apenas o cenário geopolítico no qual Portugal e o restante do mundo estavam inseridos, mas também as consequências dos jogos de espionagem sobre a população da pequena freguesia de Glória do Ribatejo. Era lá que estava localizada a Radio Retransmissão (RARET), central americana de transmissão de propaganda anticomunista para o Leste Europeu. Isso explica o interesse dos comunistas em recrutar simpatizantes dentre a população local.

Além disso, a série faz questão de mostrar algumas intensas cenas de ação ambientadas durante a Guerra de Independência de Angola, conflito no qual Vidal serviu por dois anos e que o deixou com sequelas físicas e psicológicas. Foi lá que ele começou a simpatizar com as ideias de esquerda, facilitando seu posterior recrutamento por Alexandre (Adriano Luz), um mestre-espião soviético para quem ele passou a trabalhar. Do lado americano, a contraespionagem é comandada por Anne Wilson (Stephanie Vogt), ainda que seu marido James (Matt Rippy) e o “cão de guarda” Bill (Jimmy Taenaka) representem o país publicamente.

Como se isso não bastasse, Glória também pinta um interessante retrato da sociedade portuguesa de 1968, marcado especialmente pela misoginia. É possível ver mulheres de diferentes origens e classes sociais tendo que lidar com os diferentes desafios e abusos inerentes a uma sociedade majoritariamente patriarcal. Seja a mestre-espiã Anne, seja a jovem Carolina (Carolina Amaral), seja a dona de casa Sofia (Maria João Pinho), seja a socialite Madalena Vidal (Leonor Silveira), todas elas precisam lidar com homens que as veem como objetos ou como pessoas que precisam ser controladas.

glória 3A série portuguesa nem precisava de belíssimos visuais e de uma trilha sonora fantástica para impressionar ao espectador, mas esses dois elementos também estão presentes. O diretor Tiago Guedes chega ao cúmulo de orquestrar alguns longos, impressionantes e imersivos planos-sequência, resultando em um dos melhores usos possíveis para o orçamento provido pela Netflix.

Impressionantemente, a narrativa de Glória consegue equilibrar todos esses elementos para contar uma vibrante história de espionagem em um dos fronts menos conhecidos da Guerra Fria. A trama também lida com questões éticas e ideológicas, explorando as motivações pessoais e profissionais de uma ampla gama de personagens. A produção lembra séries como Condor (resenha aqui) e The Americans, ainda que a história e os eventos mostrados aqui sejam mais realistas do que os dessas outras. Há também uma certa similaridade temática com a série A Very Secret Service, apesar dessa comédia francesa estar mais interessada em satirizar os espiões e os interesses coloniais daquele país.

Parte do realismo de Glória está no fato de que, ao fim, não há nenhuma grande vitória a ser comemorada por nenhum dos lados. Há apenas derrotas, algumas maiores, outras menores; algumas parcialmente mitigadas, outras definitivas. Talvez isso impeça que a trama tenha um impacto emocional digno de sua produção, mas esse aspecto também a aproxima das histórias contadas pelo mestre John Le Carré, que geralmente tinham finais trágicos e anticlimáticos. Não há realmente heróis ou vilões, mas apenas pessoas acreditando cegamente em ideologias e indo longe demais em nome delas. Não é à toa que, em determinado ponto, João Vidal recite um marcante poema do português Reinaldo Ferreira:

Receita Para Fazer um Herói

Tome-se um homem,
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto.

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