Raised by Wolves: O Terror na Maternidade e a Felicidade na Ignorância


* Contém SPOILERS da segunda temporada de Raised by Wolves

O último episódio da segunda temporada de Raised by Wolves faz uma pergunta bem comum em obras de ficção científica: e se uma inteligência artificial encarregada de proteger a humanidade decidir que a melhor forma de fazer isso é privando o ser humano de sua capacidade de escolha? O tema já foi explorado em filmes como Eu, Robô e I Am Mother, assim como no sucesso Vingadores: Era de Ultron, no qual uma problemática inteligência artificial conclui que a melhor forma de se atingir a “paz na Terra” é eliminando a humanidade.

Mas essa questão é apenas a cereja no aterrorizante bolo dessa segunda temporada.

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Esses oito episódios possuem bem mais terror do que os dez da primeira temporada, focando em mulheres que precisam lidar com alguns dos aspectos mais desesperadores da maternidade. Mãe (Amanda Collin) precisa lidar com a potencial ameaça vinda de sua “criança” Número 7, que é uma serpente voadora; Tempest (Jordan Loughran) não está pronta para dar à luz depois de uma gravidez que é fruto de um abuso sexual; Sue (Niamh Algar) tenta se tornar uma verdadeira mãe para Paul (Felix Jamieson), apesar do garoto ter muito ressentimento em relação a ela; e, por fim, Decima (Kim Engelbrecht) tem uma complicada relação com Vrille (Morgan Santo), uma androide que possui a aparência e as memórias de sua falecida filha.

Enquanto isso, Pai (Abubakar Salim) aceita de bom grado o fanatismo dos ateus desde que isso signifique a proteção de suas crianças. Já Marcus (Travis Fimmel) tenta conciliar seu complexo de messias com os sentimentos paternais que tem em relação a Paul, que também acredita ser “o escolhido” de Sol.

Os principais eventos dessa temporada são causados pelos instintos maternais e paternais dos personagens, o que é muito apropriado em uma série que tenta destrinchar os mecanismos psicológicos por trás da religiosidade. No hostil ambiente do planeta Kepler-22b, esses desesperados pais recorrem a ideias cada vez mais irracionais e a lógicas cada vez mais distorcidas para tentar garantir a sobrevivência de seus filhos. Mesmo Sue, que já sabe que a misteriosa entidade em ação no planeta não é um deus, toma uma decisão temerária quando a vida de Paul está em risco.

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Essa temporada de Raised by Wolves também tem algum espaço para humor, especialmente quando Mãe e Pai entram em acaloradas (para padrões “robóticos”) discussões passivo agressivas sobre seus novos “rebentos”. Ela tenta defender que Número 7 não é tão perigoso quanto parece, enquanto ele defende que a androide que ele acabou de regenerar, e que ficaria conhecida como Avó (Selina Jones), é mais uma maravilha do que uma ameaça.

Mas alguns dos melhores momentos dessa temporada são os de terror, especialmente nos episódios cinco e seis, que mostram a vingança de Vrille e o nascimento do bebê de Tempest. Também se destacam as alucinações de Sue, o encontro de Marcus com um dos antigos habitantes do planeta, a transformação de Paul depois de ser infectado por um agente biológico desconhecido, o resgate do bebê de Tempest, o “upgrade” sofrido pela serpente voadora e o encasulamento de Mãe no véu da Avó enquanto os objetivos dessa última são revelados.

Gênesis

Apesar do foco nos temas maternais, essa temporada de Raised by Wolves não abandona a iconografia e os temas religiosos. Além da serpente, há uma “árvore da vida” e um “fruto proibido” vindo dela. No episódio final, a revelação dos planos da Avó nos leva diretamente para as ideias por trás do livro de Gênesis da Bíblia Sagrada, especialmente quando a personagem diz: “Eu sempre acreditei que a felicidade, e não o conhecimento, é o fator mais importante para a vida eterna da humanidade.” Nesse texto de 2014, eu já escrevia sobre isso:

Na Bíblia Sagrada, o livro do Gênesis revela o que pra mim é um dos mais interessantes aspectos da natureza humana. No idílico Jardim do Éden, homem e mulher podem viver tranquilamente, em plena harmonia entre si e com a natureza. Não havia preocupações e viveriam para sempre. Havia apenas um limite: a árvore do conhecimento do bem e do mal. Uma vez que caem em tentação e provam do seu fruto, se tornam mortais e ficam cientes de suas vergonhas.

Percebe-se que a parábola representa o momento no qual obtemos o conhecimento das coisas, ou o nosso raciocínio, ou a nossa autoconsciência. Uma vez que possuímos esse conhecimento, somos castigados com o exílio e nos tornamos responsáveis pelo nosso próprio destino. Notemos então o ponto de vista dos homens que escreveram essa parábola: para eles, o conhecimento do bem e do mal é algo que não deveríamos ter, e estaríamos melhor se fossemos tão inocentes quanto os animais; além disso, nossa mortalidade e a responsabilidade que temos sobre nossas vidas nos vieram como castigos (…).

Eis então o aspecto que acho tão interessante: como muitos hoje, os autores dessa obra invejam a simplicidade da vida dos animais, pois esses apenas comem, bebem, acasalam e morrem, sem aparentemente se preocupar com preceitos morais ou ter que tomar decisões complicadas. Para um maior efeito dramático, sempre digo que essa parábola revela a inveja que seus autores sentem dos cães.

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No caso de Raised by Wolves, os androides da geração da Avó decidiram que a melhor forma de proteger a humanidade (ou a espécie que deu origem à humanidade na Terra) seria fazendo-a involuir. Sem inteligência e sem capacidade de reflexão, esses novos seres não seriam passíveis de manipulação pela entidade, já que suas ações são baseadas apenas em instintos primitivos. Assim como os autores de Gênesis, a Avó enxerga a ignorância como fundamental para a sobrevivência e para a felicidade, partindo do pré-suposto de que o conhecimento corrompe e apenas uma inocência pueril pode nos levar a um estado de equilíbrio.

Portanto, a ideia da ignorância como fonte de felicidade não nasce com androides futuristas, mas sim com pessoas desesperadas em busca de salvação, tentando se livrar do peso da responsabilidade e do incômodo de suas dissonâncias cognitivas. Os temas tratados nessa segunda temporada de Raised by Wolves são tão profundos que, às vezes, nem os espectadores escapam da manipulação: é possível encontrar na Internet pessoas teorizando que a entidade é um “falso deus”, e que o “verdadeiro” deus Sol ainda irá se mostrar para os personagens.

Diante disso, vamos ficar com uma das frases mais marcantes da Avó: “Quando tomados pelo medo, até ateus irão inventar deuses para os quais rezar. Eu te garanto que essas preces não serão atendidas.”

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