Fanatismo: Anatomia de uma “Doença”


A palavra fanático tem sua origem no latim, do termo fanaticus, significando “aquele que se diz inspirado pelos deuses”. Inicialmente, ela não tinha um sentido negativo, mas isso foi mudando conforme o tempo passou. Nesse artigo, o autor discorre brevemente sobre a História do uso desse termo e sobre como o fanatismo não é um problema novo nas sociedades humanas:

Embora possa ser difícil de acreditar dado o seu uso atual, a palavra “fanatismo” começou como um termo neutro, puramente descritivo, se referindo a um determinado tipo de experiência religiosa que ocorria em um determinado tipo de templo romano, chamado de fanum. Os sacerdotes desses antigos “cultos misteriosos”, que existiram entre os Séculos 5 a.C. e 5 d.C., foram os primeiros fanáticos da História.

Porém, durante a era cristã, o conceito ganhou sua conotação decisivamente negativa, como uma referência a alguém com crenças religiosas errantes e perigosas. Martinho Lutero, por exemplo, (…) frequentemente denunciava como “falsos profetas” e “fanáticos miseráveis” os pastores revolucionários que iam ainda mais longe do que ele em suas iconoclastias religiosas e políticas. Ao rejeitar a validade de todas as autoridades seculares humanas, esses pastores populistas buscavam trazer os céus para a Terra, o que era longe demais para Lutero.

Dois séculos depois, durante a Revolução Francesa – quando observadores testemunharam as formas de paixão e ardor que existiam apenas em questões religiosas – o conceito de fanatismo se expandiu para permitir uma versão notoriamente política. (…) Esses observadores enxergaram os mesmos tipos de erros de pensamento mostrados por fanáticos religiosos do passado, dessa vez aplicados não a dogmas religiosos, mas em questões políticas.

Por mais que muitas pessoas tentem fazer essa associação, o fanatismo não é reconhecido como uma doença ou transtorno mental. Há correlações e até mesmo pontos em comum entre os dois, mas o problema é, no máximo, descrito como um “comportamento disfuncional”. Esse artigo aborda esse tema e fala sobre uma das relações entre o fanatismo e os transtornos mentais:

Comportamentos fanáticos podem deixar a pessoa mais suscetível a alguns fatores de risco para saúde mental. Por exemplo, quem se juntou a um culto e acredita firmemente na superioridade de um líder pode ficar mais exposto ao abuso físico, moral, financeiro ou sexual, o que sabidamente é uma causa de transtornos mentais. “Há ainda um prejuízo para o funcionamento interpessoal, afinal quem entra em um fanatismo (delirante) tende a não escutar a família ou pessoas próximas que queiram ajudar, devido a uma inflexibilidade e intransigência que vai afastando as pessoas”. (…)

Abandonar comportamentos fanáticos pode ser estressante, principalmente quando isso acontece no contexto de grupos fortemente coesos, como fundamentalistas religiosos ou políticos. Muitas vezes, é preciso suporte externo durante esse processo. O grande desafio é fazer a pessoa compreender a importância de buscar apoio, pois, em geral, o fanático não enxerga seus excessos como um problema.

O fanatismo como vício

Esse último parágrafo dialoga com a proposta desse artigo, no qual o autor propõe que o fanatismo seja tratado de forma semelhante ao alcoolismo:

O fanatismo é uma droga. Se deixado livre na sociedade, é como o crack ou o álcool, mas pior. Os fanáticos conduzem suas vidas como alcoólatras dirigindo embriagados: eles acham que estão dirigindo perfeitamente bem, mas matam transeuntes inocentes, às vezes aos milhares ou milhões.

Porém, nós aprendemos que tratar os alcoólatras como criminosos não ajuda nem a nós e nem a eles. A organização Alcoólicos Anônimos é bem-sucedida, em parte, porque dá aos viciados uma saída graciosa do impasse no qual eles se encontram. É difícil largar uma droga se para tal você precisa admitir que é uma pessoa completamente desprezível. Constranger o viciado pode torná-lo mais resistente. É mais fácil largar o vício se você declarar que é portador de uma doença virulenta, que pode contagiar qualquer um de nós. Ninguém está imune ao risco. Não é sua culpa, mas é sua responsabilidade largar o vício.

O artigo citado acima chega a propor uma alternativa aos doze passos do programa de recuperação dos Alcoólicos Anônimos, mas substituindo o “poder de Deus” pelo “poder da razão” como força superior à qual o fanático pode recorrer. O autor reconhece que essa é uma troca “peculiar”, até porque o fanático já acredita que sua forma de agir é perfeitamente racional ou, pelo menos, perfeitamente justificável. Mas ele diz que a razão da qual ele fala é uma razão nos moldes da ciência:

De forma contínua – é assim que a ciência pratica a razão. Enquanto os fanáticos dizem “eu pensei uma vez, cheguei a uma verdade absoluta e não preciso pensar de novo”, a ciência (…) admite que não existe palavra final, mas apenas as melhores conclusões do momento, que serão melhoradas por meio da investigação contínua.

Uma outra forma de olhar para essa ideia, e que também é brevemente mencionada pelo autor do artigo acima, é ver a razão como a nossa capacidade de controlar os nossos impulsos mais básicos e agir de uma forma responsavelmente calculada.

Seria a razão como inteligência emocional. Se formos capazes de reconhecer e refletir sobre nossos sentimentos ao invés de simplesmente obedecê-los cegamente, seremos capazes de tomar decisões que levem em conta as consequências de nossas ações. Essa capacidade de reflexão também nos ajudaria a nos responsabilizar por nossos erros, a não agirmos com base apenas em nossas inseguranças e a lidarmos de forma saudável com qualquer dissonância cognitiva que possa surgir.

Porém, diante de um mundo repleto de mudanças, algumas delas significativamente bruscas, as pessoas se agarram de forma irracional às crenças que lhe são mais confortáveis, que lhes levam de volta para períodos mais simples ou felizes de suas vidas; ou que, teoricamente, lhes levem para um sonho de mundo ideal. E quando aparecem indivíduos que oferecem respostas fáceis e supostas “soluções” que irão fazer tudo ficar bem, as pessoas tendem a segui-los inquestionavelmente.

O papel do líder no fanatismo

As incertezas e inseguranças comuns nas várias épocas e nas várias sociedades humanas levam parte das pessoas a buscarem segurança em práticas e ideologias extremistas. Os especialistas em psiquiatria consultados pelo autor desse artigo listam as necessidades que os fanáticos tentam atender por meio dessas ideologias:

  • Respostas simples, preto ou branco, sem zonas cinzentas;
  • Serem protegidos de um “mal” imaginário;
  • Um senso de comunidade;
  • Se sentirem importantes;
  • Se sentirem superiores aos “outros”;
  • Garantir direitos ou recursos especiais, seja nessa vida ou na próxima;
  • Redenção por erros cometidos no passado;

Na maioria das vezes, os líderes fanáticos oferecem todos esses elementos em seus “inspiradores” discursos, convencendo os seguidores de que tudo o que eles precisam fazer para terem essas necessidades atendidas é segui-los sem questionamentos e com lealdade total. O artigo citado acima também fala brevemente sobre o histórico e as consequências desse tipo de liderança:

Ainda que o fanatismo individual provavelmente seja tão antigo quanto a psicologia humana, o fanatismo institucionalizado é uma criatura da revolução agrícola. A clara separação entre uma classe dominante poderosa e rica e seus servos dependia de doutrinas religiosas que promoviam uma devoção fanática aos líderes definidos. Desde então, movimentos religiosos têm sido a causa de, ou o pretexto para, boa parte das guerras e dos preconceitos desse mundo. Nos últimos séculos, o nacionalismo e as ideologias políticas fanáticas foram adicionadas ao fanatismo religioso como a causa de guerras e terrorismo.

Para esse fanatismo institucionalizado florescer, é preciso que os líderes fanáticos canalizem as demandas populares para práticas abusivas e autoritárias. Ainda de acordo com o artigo acima, as características dos líderes fanáticos são:

  • Eles podem ser bem diferentes entre si, mas geralmente utilizam os mesmos métodos para transformar os seguidores em fanáticos;
  • Transmitem um mensagem simples com uma grande convicção e propaganda constante;
  • Negam a verdade, manipulam a realidade objetiva, distorcem os fatos e criam notícias falsas;
  • Não toleram a contradição e destroem a oposição;
  • Tentam deslegitimar ou censurar visões alternativas;
  • Dividem os temas e as pessoas entre completamente bons ou ruins;
  • Criam bodes expiatórios e alvos para a fúria dos seguidores;

Ao direcionar a raiva dos seguidores para pessoas ou grupos específicos, o líder fanático tira o foco de seus próprios defeitos e limitações, passando a se apresentar como único capaz de levar à “salvação” ou “consertar” o país. Ele convence os seguidores de que é incorruptível e de que todos os problemas do mundo ou da nação são culpa do “inimigo” escolhido. Isso lhe dá liberdade para cometer crimes e abusos sem correr o risco de ser questionado por sua base de apoiadores, que sempre irá culpar o “outro lado” por todos os problemas.

A “beleza” dessa tática é que, depois de um tempo, o líder fanático não precisa mais se dar ao trabalho de projetar essa imagem de “perfeição”. Chega o ponto no qual os seguidores já investiram tanta lealdade e tanta adoração a essa imagem que eles mesmos precisam mantê-la custe o que custar. Nesses casos, é comum ver os seguidores justificando ou racionalizando as ações criminosas ou antiéticas de seus ídolos. O líder não precisa mais pensar em desculpas ou explicações para seus atos, pois os fiéis seguidores colocarão a imaginação para trabalhar e vão prover todas as “justificativas” necessárias.

Se reconhecessem que o líder não é tão perfeito e benevolente quanto eles achavam e declaravam, eles estariam reconhecendo que estavam errados. Porém, dado que a insegurança é uma das bases do fanatismo, é pouco provável que os fanáticos estarão dispostos a reconhecerem os próprios equívocos.

Geralmente, também é a partir desse ponto que o líder começa a perder o controle de seu “rebanho”.

O público do fanatismo

Quando uma pessoa se torna fanática, ela torna o objeto de seu fanatismo o centro de sua existência. Relações familiares e amorosas, amizades, vida profissional e momentos de lazer são todos passíveis de serem substituídos por (ou despriorizados em prol de) uma fixação irracional. Consequentemente, as pessoas mais susceptíveis à radicalização são as que já não encontram satisfação nesses outros elementos de suas vidas.

Por exemplo, a solidão é um dos fatores de risco para o extremismo. Conforme citado anteriormente, dois dos motivos pelos quais as pessoas se entregam ao fanatismo são para se sentirem importantes e para terem um senso de comunidade. Muitas vezes, um grupo radical é o único lugar (ou o lugar mais fácil) no qual a pessoa encontra acolhimento e camaradagem. De repente, ela se sente parte de algo importante e tem um novo propósito de vida, ainda que esse propósito não seja nada saudável ou construtivo.

Outro fator de risco é o narcisismo típico da juventude, que pode se estender até idades mais avançadas. Conforme escrevi aqui:

Quando começamos a aprender sobre o mundo, todos nós passamos por uma fase na qual achamos que já sabemos tudo o que precisamos saber. A certeza é tanta que não conseguimos sequer levar em conta que existem outras formas de se olhar para o mundo, sob outros pontos de vista, com base em outras experiências de vida. Os problemas mais sérios começam a aparecer quando acreditamos que nosso ponto de vista é tão justo e correto que qualquer coisa que for feita em nome dele é justificável. A pessoa se torna uma extremista quando ela passa a acreditar que os fins justificam os meios.

Obviamente, essa certeza de que já sabemos tudo o que precisamos saber pode começar em diferentes fases de nossas vidas, e é comum na terceira idade. Ao analisar a composição demográfica (em sua maioria, pessoas acima dos 50 anos de idade) dos extremistas responsáveis pelos recentes ataques às sedes dos três poderes em Brasília, o autor desse artigo recorre ao filósofo alemão Erich Fromm e ao seu longo ensaio sobre a destrutividade humana:

Em seu livro, Fromm destaca o quanto a violência grupal é excitante. Sustenta a emoção que a guerra causa, mesmo frente aos riscos de vida. No caso de vivências entediantes e rotineiras, carentes de aventuras, o envolvimento com atos coletivos ofensivos a grupos adversários ou inimigos – mesmo imaginários – “deve ser compreendida como um desejo de pôr fim à rotina maçante da vida cotidiana”. Segundo o autor:

“As observações da vida diária mostram que o organismo humano, assim como o organismo animal, tem necessidade de um certo mínimo de excitação e estimulação, do mesmo modo que ambos sentem necessidade de um certo mínimo de repouso. Observamos como os homens reagem avidamente à excitação e como a procuram.”

Também é comum que o estímulo ativador da violência seja tão-somente uma fuga ao tédio. (…) Essa relação tédio-violência como fuga envolve comumente pessoas que se apresentam frias, congeladas em suas emoções, cujo mundo se apresenta como cinzento. Algumas delas, vivem numa situação de depressão endógena psicótica; outras, em depressão crônica. Muitas delas se jogam em formas extremas de destrutividade.

O trecho acima reforça vários dos pontos levantados anteriormente. Ainda que já se saiba tudo isso sobre os mecanismos responsáveis pelo fanatismo, esse ainda é um problema para o qual não soluções ou resoluções fáceis. Por ora, o que podemos fazer é continuar pesquisando sobre o assunto e prover redes de segurança que não permitam que as pessoas em geral caiam nas garras do extremismo.

Referências:

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