Sandman e as Manifestações Antropomórficas da Experiência Humana


* Contém SPOILERS da primeira temporada de Sandman

Nós somos feitos da mesma coisa que os sonhos, e a nossa pequenina vida está contida em um sono.
William Shakespeare, A Tempestade

A humanidade tem a estranha tendência de antropomorfizar objetos, animais, fenômenos naturais, ideias, sentimentos e o que mais nós pudermos representar por meio da linguagem. E muitas dessas antropomorfizações resultaram em deuses antigos, alguns deles adorados até hoje. Há os deuses da chuva, os deuses do vento, os deuses da fertilidade, os deuses da sabedoria, e outros mais. Há inclusive os deuses dos sonhos, sendo que o mais conhecido dentre eles é Morfeu, originado na mitologia grega.

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Morfeu (Tom Sturridge), também conhecido apenas como Sonho, é o protagonista de Sandman, uma aclamada série em quadrinhos agora adaptada como uma série da Netflix. A história começa quando essa entidade, que comanda e representa todos os sonhos e pesadelos da humanidade, é aprisionada no mundo real. Quando ele finalmente é libertado de seu cativeiro, sua missão é recuperar suas ferramentas de trabalho e reconstruir o seu reino, o Sonhar.

Mas o que começa como uma cósmica e gótica aventura se transforma em uma jornada pela condição humana. Desejo (Mason Alexander Park) e Desespero (Donna Preston) tramam contra Sonho e traçam planos para destruir o Sonhar. Nessa primeira temporada, é apenas com Morte (Kirby Howell-Baptiste) que Sonho tem uma relação amistosa e realmente fraternal. Desejo, Desespero, Morte e Sonho são apenas quatro dos sete irmãos que formam os Perpétuos, uma disfuncional família que também inclui Destino, Destruição e Delirium.

Essa abordagem faz com que Sandman se encaixe muito bem em nossa tendência à antropomorfização. Desde seus primórdios, a humanidade acredita que se algo acontece é porque alguém fez acontecer. Isso nos levou a imaginar personagens místicos que controlam e guardam a existência humana.

Em nossos momentos de desespero, nós rezamos para que essas entidades nos ajudem e consertem o que nós não podemos consertar. E então nós acreditamos nas histórias que nós mesmos criamos para nos sentirmos seguros e amparados, com os personagens fictícios servindo como eternas figuras maternas e paternas.

Esse é um dos motivos pelos quais o mundo se torna caótico quando o mortal John Dee (David Thewlis) utiliza uma das ferramentas de Sonho para retirar da humanidade a capacidade de mentir. Junto com ela, a humanidade também perde a capacidade de sonhar, ou de acreditar nas fantasias e narrativas que nos ajudam a seguir em frente. Talvez acreditar signifique mentir para si mesmo, ou contar para nós mesmos histórias que justifiquem as nossas ações ou que expliquem aquilo que ainda não conseguimos explicar.

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Porém, John Dee é um fanático. Ele enxerga apenas seu próprio ponto de vista e leva em conta apenas a sua própria fantasia. O episódio de Sandman protagonizado por ele parece ser uma versão ainda mais cruel de O Anjo Exterminador. Nesse filme mexicano de 1962, os convidados de um jantar de alta classe são reduzidos a seus instintos mais básicos depois de perderem a capacidade de sair do local onde estavam reunidos, revelando a brutalidade que estava por baixo da superfície de educação e civilidade.

A sinceridade radical de John Dee é espelhada pela obsessão que alguns personagens desenvolvem pelo mundo dos sonhos, como é o caso de Lyta Hall (Razane Jammal). Em determinado ponto, ela decide que irá passar o restante da sua vida no Sonhar, apesar daquela não ser a realidade à qual ela pertence. Assim como todas as coisas da vida, acreditar é algo que precisa ser feito com moderação.

Quando a crença sai de controle, as pessoas podem enxergar santos, profetas ou salvadores onde há apenas homens de carne e osso, com seus próprios vícios e defeitos. E em alguns casos, como os mostrados nas séries documentais Colônia Dignidade e Rezar e Obedecer, esses homens vistos como “santos” podem se aproveitar do poder da fé para agirem como monstros.

As armadilhas da crença também são exploradas em séries como Raised by Wolves e Missa da Meia-Noite, mas Sandman se difere ao mostrar essas armadilhas sob o ponto de vista das entidades místicas criadas pela crença humana. O poder da crença também é explorado na segunda temporada de Legion, que tem início com o narrador propondo que o espectador imagine um gigantesco labirinto no meio de um deserto, descrevendo-o como “um enigma pelo qual você pode andar”. Mas há uma reviravolta:

Você consegue ver o labirinto? Suas paredes, seu chão, suas voltas e curvas? Ótimo, pois o labirinto que você criou em sua mente também é, ele mesmo, um labirinto. Não há deserto, nem pedras ou areia. Existe apenas a ideia dele. Mas é uma ideia que vai dominar cada momento de sua vida. Você está dentro do labirinto agora. Não pode escapar.

Seja bem-vindo à loucura.

Porém, a crença não é uma questão de loucura, mas sim de necessidade. Diante das muitas ameaças que cercam a humanidade e da certeza da morte, nós precisamos nos convencer de que existem certas garantias que nos são dadas por seres místicos. Esses seres não podem ser vistos e essas garantias não podem ser comprovadas, mas nós precisamos acreditar. Ao contrário de outros animais, que precisam apenas seguir seus próprios instintos e não refletem sobre a própria existência, nós precisamos nos tranquilizar contando histórias para nós mesmos. E essas histórias nos garantem que está tudo bem e que vai dar tudo certo.

Uma outra série que lida com questões relativas à crença e à nossa existência é True Detective, com a diferença de que o terror cósmico dela é bem mais pessimista que o terror cósmico de Sandman. Na primeira temporada, o detetive Rust Cohle (Matthew McConaughey) afirma que uma das coisas que ele enxerga nos olhos das muitas vítimas de homicídio que ele vê em fotos e em cenas de crime é… alívio. Para ele, nos momentos finais, aquelas pessoas enxergaram a realidade de sua situação:

Você, você mesmo, todo esse grande drama, tudo isso nunca foi mais nada do que uma solução improvisada feita de presunção e vontade burra, e você poderia simplesmente deixar ir. Finalmente saber que você não tinha que ter se segurado com tanta força. Perceber que toda a sua vida, todo o seu amor, todo o seu ódio, todas as suas memórias, toda a sua dor, foi tudo a mesma coisa. Foi tudo o mesmo sonho, um sonho que você teve dentro de uma sala trancada. Um sonho de que você é uma pessoa. E como em muitos sonhos, há um monstro no final.

Essa não é bem a abordagem de Sandman, mas há certos pontos em comum entre essa visão e a reação das pessoas quando encontram a Morte. Na série, a Morte é uma bela e simpática mulher que avisa aos recém falecidos que o tempo deles acabou e os guia para a próxima fase de sua jornada. Alguns ainda fazem uma última oração, enquanto outros pedem um pouco mais de tempo, mas não há como negociar com ela. No final, todos eles aceitam aquela nova situação e acompanham a Morte a seja lá onde ela os está levando.

A questão é que eles pelo menos podem contar com essa agradável personificação do fim, ao invés de simplesmente as luzes se apagarem e o sonho acabar.

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Em Sandman, a Morte não é uma força destrutiva. Assim como o Sonho, o Desejo e o Desespero, ela é apenas uma parte da experiência humana. Inclusive, ela é bem diferente do Coríntio (Boyd Holbrook), um pesadelo rebelde que anda entre os mortais e mata por prazer. Assim como os assassinos em série com os quais ele se associa, o Coríntio se considera poderoso e especial devido à sua capacidade de destruição.

Porém, tanto ele quanto os outros assassinos são muito mais definidos pela mediocridade e pelo narcisismo do que por qualquer vestígio de grandiosidade. Se eles se consideram especiais porque podem matar e destruir, é porque não são capazes de guiar e construir. Seus atos não colaboram em nada para a trajetória humana, e ainda assim eles se consideram sábios e importantes. A grandiosidade deles nem chega a ser um sonho, mas apenas um delírio.

No filme Doutor Estranho no Multiverso da Loucura, os sonhos são janelas para universos alternativos. Em Waking Life, os sonhos oferecem um ambiente no qual o protagonista pode explorar as filosofias e a natureza infinita da nossa realidade. Em filmes como A Origem e A Cela, os sonhos são mundos imaginários criados pelo nosso subconsciente, podendo ser invadidos mediante o uso de determinadas tecnologias.

Em Sandman, os sonhos são fantasias criadas e gerenciadas por Morfeu para dar esperança à humanidade. Se o Senhor dos Sonhos é umas entidades mais poderosas do universo é porque antes de qualquer grande mudança ocorrer no mundo real, ela precisa existir como sonho ou como pesadelo na imaginação dos reles mortais.

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