Colônia Dignidade: O Terror Absoluto e a Fragilidade Humana


A atual onda de filmes e séries documentais sobre crimes reais possui um subgênero dedicado apenas a produções sobre seitas, dentre as quais se destacam séries como Wild Wild Country (comentário aqui) e The Way Down (crítica aqui). Porém, nenhuma delas se aproxima do completo e multifacetado terror da história contada em Colônia Dignidade: Uma Seita Nazista no Chile. Os limites da crença e da perversidade humana parecem ser ultrapassados nesse caso real que em muito se assemelha a um perturbador pesadelo.

Terror Absoluto

A única história que rivaliza com a escuridão da Colônia Dignidade é a do Templo do Povo dos Discípulos de Cristo, que terminou com mais de novecentos mortos. Porém, além dos relatos de corpos em valas comuns, o líder da Colônia também deixou incontáveis vítimas de suas sistemáticas práticas de abuso sexual, que duraram mais de quarenta anos. Paul Schäfer fugiu da Alemanha ainda nos anos 1950 sob acusações de pedofilia e se estabeleceu em 1961 em uma remota propriedade rural no Chile, onde fundou a Colônia Dignidade. Antes disso, sob a desculpa de querer fazer a “obra de Deus”, ele já havia dito a seus seguidores que precisava de “um lugar onde ninguém possa interferir”.

Parte do sucesso de Schäfer está justamente em seus seguidores. Os primeiros alemães que o seguiram o viam como uma pessoa caridosa e carinhosa, que gostava de cuidar de crianças. Seu fervor religioso e sua inspiradora oratória o davam um ar de “homem santo”, de alguém que está mais próximo de Deus do que a maioria das pessoas. Já as gerações seguintes, descendentes dos colonos originais, não tinham outra opção a não ser considerá-lo um “líder supremo”, já que cresceram em um ambiente no qual ele era tratado como uma divindade entre homens.

A obediência cega que os colonos reservavam a Schäfer os levou inclusive a aceitar que ele os separassem de seus filhos. Segundo ele, o “excesso de amor” poderia estragar as crianças, sendo melhor que elas fossem criadas coletivamente pelas cuidadoras. Obviamente, isso servia para deixá-las vulneráveis aos seus abusos, longe da proteção dos pais. As cuidadoras jamais questionaram o porquê de Schäfer fazer questão de dar banho pessoalmente em muitas das crianças ou porque pedia que alguns dos pré-adolescentes e adolescentes passassem a noite na casa dele.

Os outros seguidores de Schäfer eram os moradores das carentes comunidades da região. Depois que surgem denúncias e boatos sobre suas práticas abusivas, ele abre um hospital e uma escola para atender à pobre e isolada população do local. Isso garante sua popularidade dentre os chilenos que não faziam parte da seita, que passaram a vê-lo como um homem de fé enviado para ajudá-los. Sua popularidade era tão grande que, quando a justiça finalmente começou a investigar o local e a fazer diligências, as pessoas fizeram protestos contra as ações e tentaram impedir o trabalho das autoridades.

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Como se tudo isso não fosse suficiente, a Colônia Dignidade também fez um pacto macabro com as forças armadas do Chile e com o sanguinário regime militar comandado pelo general Augusto Pinochet. Apesar da comunidade ter regras semelhantes a de regimes comunistas (como o trabalho em prol do interesse coletivo e a proibição da propriedade privada), a ascensão do presidente socialista Salvador Allende deixa Schäfer com medo das expropriações de terra prometidas pelo governante. O que o documentário mostra é que Schäfer estava muito mais próximo da articulação do golpe do que o próprio Pinochet, que permaneceu aliado a Allende até as vésperas do ataque final.

Uma vez que Pinochet se torna presidente, a Colônia Dignidade se converte em um “sofisticado” centro de tortura. Acredita-se que ex-nazistas praticaram e ensinaram técnicas de tortura para os militares chilenos, além de terem ajudado a matar e a esconder os corpos de desaparecidos políticos. É provável, inclusive, que o infame Josef Mengele, criminoso nazista que morreria posteriormente no Brasil, esteve presente na Colônia. As valas comuns são mencionadas por um dos ex-membros do grupo, que diz ter participado da operação para esvaziá-las e se livrarem dos restos mortais, que poderiam ser utilizados como provas em processos criminais.

Essa íntima relação com o governo e com as forças armadas garantiu que a Colônia Dignidade permanecesse acima da lei por várias décadas. Não era a toa que Schäfer se considerava intocável enquanto Pinochet fosse o presidente. Mesmo depois da redemocratização, o predador sexual seguiu sendo protegido pela ampla rede de aliados que possuía dentre a elite econômica e política do Chile. Depois de décadas de abusos e de muitas denúncias ignoradas, sua queda começaria a se concretizar no final dos anos 1990.

Fragilidade Humana

Os seis episódios de Colônia Dignidade: Uma Seita Nazista no Chile levantam muitas questões sobre o funcionamento de seitas. O grupo liderado por Schäfer tem diversas similaridades tanto com o Templo do Povo quanto com conhecidas seitas brasileiras. Porém, a série expõe intimamente o quão longe pode ir a obediência cega que as pessoas têm por um líder visto como infalível. Autorizados a aprender apenas o que Schäfer permitisse e proibidos de se relacionarem entre si, alguns dos entrevistados afirmam que chegaram aos quarenta anos de idade sem saber exatamente como os bebês são concebidos.

É essa “realidade alternativa” criada pelo líder que explica como tantas pessoas puderam segui-lo. A maioria delas não tinha pontos de referência a partir do mundo exterior. Elas cresceram naquele grupo e foi aquele grupo que lhes ensinou o que é certo e errado. Elas não conhecem outros pontos de vista e outras formas de se olhar para o mundo, ficando incapacitadas de questionarem as coisas que aconteciam ao seu redor e de tomarem decisões realmente individuais. Mesmo se em algum momento questionassem Schäfer, elas o faziam com a consciência pesada, ficando com a impressão de que estavam sendo ingratas ou cometendo uma traição.

Já a existência de apoiadores dentre as comunidades vizinhas é explicada pela fragilidade social daquela população. Sem acesso a direitos básicos como saúde e educação, as pessoas ficaram imensamente agradecidas pelos serviços providos pela Colônia Dignidade, que devem ter feito a diferença nas vidas de muitas delas. Como o homem que lhes ofereceu um hospital e uma escola poderia ser uma pessoa ruim? Como o homem que estava afastando seus filhos da bebida e das drogas poderia ser um criminoso sexual? A imagem de benevolência projetada por Schäfer fazia com que muitas pessoas não estivessem dispostas a acreditar nas denúncias que foram feitas ao longo dos anos.

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Os militares e a elite econômica, por sua vez, viam em Schäfer um grande aliado na luta contra o comunismo. Diante disso, era do interesse deles fazer vista grossa para quaisquer acusações feitas contra o alemão e blindá-lo de qualquer tipo de investigação policial. A série mostra imagens da visita que o próprio Pinochet fez à Colônia Dignidade, que também era considerada um “porto seguro” para nazistas alemães fugitivos da justiça. Supostamente, ex-oficiais da Gestapo e da SS foram os responsáveis por ensinar técnicas de tortura para os agentes da inteligência chilena.

Apesar da brutal violência cometida contra opositores políticos e de ter sido condenado por desvio de recursos públicos, Pinochet ainda tem muitos admiradores dentro e fora do Chile. Assim como as comunidades carentes só viam o lado positivo de Schäfer, esses apoiadores só veem o lado “positivo” (ou útil) de Pinochet. Dentre eles está o atual presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, além de seus filhos e aliados, que chegaram a elogiar a brutalidade da ditadura militar chilena.

A minissérie Colônia Dignidade: Uma Seita Nazista no Chile foi criticada pela Agrupación de Exniños Chilenos Víctimas de Colonia Dignidad por seu caráter “reducionista”, como se Schäfer tivesse agido sozinho na liderança da seita. O agrupamento de vítimas também condena o fato de que vários dos entrevistados são pessoas condenadas por suas ações na Colônia, apesar de ser justamente por isso que o documentário consegue ir tão fundo na realidade daquelas pessoas e daquele local.

Ao fim, casos como o da Colônia Dignidade realçam a importância das pessoas jamais abrirem mão de seu pensamento crítico e jamais seguirem líderes cegamente. Ninguém é tão sábio, ou tão bondoso, ou tão “iluminado”, que mereça ser obedecido sem reflexão. O fato de que um líder é bom para algumas pessoas não justifica ou lhe dá o direito de cometer crimes contra outras. Ao aceitarem comportamentos tóxicos ou criminosos em nome de um suposto “bem maior”, as pessoas estão abrindo mão da própria integridade e dando espaço para monstros que podem se voltar contra elas próprias.

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