O Dono de Kingstown: Ordem e Retrocesso
As tensas negociações e a violência chocante continuam sendo duas das principais características de O Dono de Kingstown em sua segunda temporada. Além de tensas, as negociações que ocorrem na série são tão pragmáticas quanto pessimistas, com personagens muito mais preocupados em atingir seus objetivos do que com o que é certo ou errado. Mais uma vez, os representantes do Estado, que deveriam garantir a lei e a ordem, agem como se fossem apenas mais uma das facções criminosas com as quais eles precisam lidar.
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É nesse contexto que Mike McLusky (Jeremy Renner) tenta restabelecer a “ordem” das coisas, já que a mega revolta prisional que ocorreu no final da primeira temporada deixou a cidade de Kingstown de cabeça para baixo. Sem líderes no interior da prisão e com os líderes externos incapazes de se comunicar com os detentos, o caos impera e a violência “vaza” para as ruas, vitimando bandidos e inocentes da mesma forma. Depois de uma chacina absurdamente sangrenta no segundo episódio, Mike tem uma ideia que vai assombrá-lo pelo restante da temporada.
Vale lembrar que Mike nem é um agente da lei e nem é membro de alguma das facções criminosas. Sua “autoridade” é proveniente não apenas do respeito que policiais e criminosos têm por ele, mas também de sua capacidade de viabilizar diálogos e mediar negociações entre todas as partes envolvidas no sistema carcerário de Kingstown. E para que seu “poder” tenha algum efeito, ele depende da colaboração dos envolvidos e das garantias de que eles cumprirão suas partes dos acordos. Sem isso, ele não pode ser “o dono de Kingstown”.
Na primeira temporada, a situação começa a sair de controle depois que as forças de segurança fazem um acordo com as facções criminosas, apesar da clara oposição de Mike. Nessa segunda, é Mike quem costura um ousado acordo entre os líderes de facção, a polícia e a promotoria pública. Obviamente, a situação começa a rapidamente sair de controle quando a promotoria se mostra relutante em cumprir sua parte do acordo e os criminosos começam a ficar impacientes.
Assim como na primeira temporada, a situação vai piorando rapidamente a cada episódio. Quando o espectador acha que tudo o que poderia dar errado já deu errado, algo ainda pior acontece e as cordas vão ficando cada vez mais apertadas nos pescoços dos personagens. Isso faz de O Dono de Kingstown uma ode ao pessimismo – ou uma ode às consequências de ações mal pensadas. Na série, boa parte dos personagens toma atitudes sem muita reflexão, sempre acreditando que estão protegidos pelo poder da lei ou pelo poder do crime organizado. Na maioria das vezes, a realidade das consequências os alcança rapidamente.
O Dono de Kingstown não é uma série sobre o combate ao crime organizado e às facções criminosas. Assim como os espiões de Sicario: Terra de Ninguém, Mike não está tentando deter os criminosos, mas sim estabelecer um equilíbrio entre o mundo do crime e o mundo das pessoas comuns. Tanto ele quanto os policiais sabem que enquanto essas organizações tiverem espaço – ou clientela – para atuar em mercados bilionários de drogas, armas e prostituição, não há como simplesmente reprimir a formação desses grupos.
O que eles fazem então é tentar isolar essa realidade. Enquanto policiais e bandidos agem de acordo com a “lei da bala”, a população em geral não deve ser atingida pelos respingos dessa “guerra civil”. É claro que as forças policiais deveriam agir de forma muito mais exemplar e legalista, mas a realidade é que elas são formadas por homens e mulheres que nem sempre sabem como lidar com as complexas ameças vindas das organizações criminosas, levando-os a reagir de forma tão instintiva quanto ilegal.
Em casos extremos, como o mostrado na minissérie A Cidade é Nossa, a própria polícia pode se tornar uma grande parte do problema.
A trama de O Dono de Kingstown não apenas joga luz sobre o sistema carcerário norte-americano mas também lembra os problemas existentes em toda a América Latina. A sangrenta rebelião da primeira temporada lembra casos como o Massacre do Carandiru, o Massacre de Alcaçuz e os conflitos entre facção de 2016-2017 na região Norte do Brasil. Já os ataques ocorridos em Kingstown nessa segunda temporada lembram tanto a violência promovida pelo crime organizado em São Paulo no ano de 2006 quanto os recentes ataques no Rio Grande do Norte, com ordens de retaliação contra o poder público partindo de dentro do sistema carcerário.
O que há em comum em todos esses cenários – tanto os fictícios quanto os reais – é a incapacidade do poder público em adotar medidas sofisticadas e inteligentes para lidar com problemas complexos e multifacetados. O Dono de Kingstown mostra que simplesmente acumular criminosos em prisões apenas provê o ambiente ideal para a organização de poderes paralelos – tanto o das organizações criminosas quanto os de Mike – que passam a concorrer com o Estado.
Já a “popular” abordagem de tentar matar a maior quantidade possível de criminosos apenas resultaria em um completo cenário de guerra, no qual as organizações criminosas são quem definem as regras do combate.