Seitas Brasileiras: Canudos e Contestado no Século 21


“Duna” foi direcionado a essa ideia do líder infalível, pois a minha visão da História diz que os erros cometidos por um líder (ou cometidos em nome de um líder) são amplificados pelo número de pessoas que o seguem sem questionamento. Foi assim que 900 pessoas acabaram bebendo um “refresco” na Guiana. Foi assim que os EUA disseram “sim, senhor carismático John Kennedy!” e o país se complicou no Vietnã. Foi assim que os alemães disseram “Sieg Heil!” e assassinaram mais de seis milhões de seres humanos.

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O trecho acima é uma fala do escritor Frank Herbert, autor da série de fantasia e ficção científica Duna. Na história, o herói Paul Atreides é considerado um messias por um aguerrido povo do deserto. Ele vê nisso uma oportunidade de retomar o controle do planeta e vingar a traição sofrida por sua família. Porém, Paul tem premonições que o mostram que seus seguidores se tornarão fanáticos a ponto de começarem uma arrasadora guerra santa em seu nome. Se aceitar o papel de líder salvador, ele poderá alcançar seus objetivos de curto prazo, mas no longo prazo não será capaz de controlar o extremismo de seus seguidores.

A referência que Herbert faz ao “refresco” na Guiana diz respeito ao assassinato e suicídio em massa no Templo do Povo dos Discípulos de Cristo, seita que se estabeleceu no citado país sul-americano em meados dos anos 1970 e que era liderada pelo pastor Jim Jones. Depois de um incidente envolvendo os assassinatos de um deputado dos EUA e de três jornalistas, Jones ordenou que todos os seguidores bebessem um suco envenenado com cianureto. Os seguidores que não concordaram ou que mudaram de ideia no último momento tomaram a bebida à força ou foram mortos a tiros pelos seguranças do grupo. No total, 918 pessoas morreram em uma única noite, incluindo 276 crianças.

O estudo desse tipo de fanatismo levou o pesquisador Leon Festinger a criar a teoria da dissonância cognitiva. Nos anos 1950, ele e outros pesquisadores se infiltraram em uma seita conhecida como The Seekers (em tradução livre, “os buscadores”) com o objetivo de avaliar como o grupo seria afetado por uma profecia não-concretizada. Os seguidores acreditavam que o mundo iria acabar em uma determinada data e que apenas os membros do grupo seriam resgatados por uma raça alienígena. Quando nada disso aconteceu, parte dos seguidores se desiludiu e voltou para a vida normal, enquanto a líder e alguns outros tiveram sua fé renovada: eles passaram a acreditar que o mundo não havia acabado por causa das muitas orações que eles realizaram no dia prometido.

De acordo com Festinger, essa nova racionalização foi provocada pela dissonância cognitiva, que seria o estresse psicológico que uma pessoa sofre quando suas crenças são contrariadas pela realidade. Diante de um fato inquestionável (o mundo não acabou), ao invés de rever sua própria lógica, a líder do grupo preferiu adotar uma explicação que não ameaçava suas crenças, e até as reforçava em alguns sentidos. Dessa forma, ela manteve a integridade de sua identidade religiosa (ou de seu ego) e não precisou reconhecer que estava errada em relação ao apocalipse.

Líderes e seguidores fanáticos também marcaram dois movimentos populares no Brasil do fim do século 19 e início do século 20, resultando nos conflitos armados conhecidos como Guerra de Canudos e Guerra do Contestado. A diferença é que aqui o fanatismo religioso era uma válvula de escape para a injustiça e a exclusão social.

Na Canudos do final do século 19, o povo recebeu de braços abertos o pregador e autointitulado profeta e enviado de Deus Antônio Conselheiro. Sob seu comando, a população do vilarejo se organizou e conseguiu oferecer melhores condições de vida para sertanejos que sofriam sob a pobreza e sob o domínio de grandes latifundiários. O povoado cresceu a ponto de se tornar a segunda maior concentração urbana da Bahia, incomodando fazendeiros, políticos e a Igreja Católica. Enquanto os fazendeiros perdiam a mão-de-obra barata aos quais já estavam acostumados após o fim da escravidão em 1888, a igreja perdia fiéis para a nova organização.

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Apesar de não haver evidências de planos de expansão, o Conselheiro pregava a volta da monarquia e acusava a república de ser um governo da “lei do cão”. Como outras seitas, ele pregava que o fim do mundo estava próximo e que uma restauração, influenciada pelo sebastianismo, iria ocorrer após esse apocalipse. A exaltação da monarquia foi a gota d’água para que parte da sociedade brasileira defendesse uma intervenção militar na região. A ação, registrada por Euclides da Cunha na série de artigos que deu origem ao livro Os Sertões, resultaria na morte da maior parte dos 25 mil habitantes do povoado, que lutou até o último homem.

Na região do Contestado, em Santa Catarina, os sertanejos já haviam encontrado orientação nos ensinamentos de dois monges João Maria, um que morreu em 1830 e outro que desapareceu em 1908. A fé era tanta que os fieis esperavam que esse segundo fosse ressuscitar para liderá-los novamente. A profecia aparentemente se concretizou com o surgimento do monge José Maria de Santo Agostinho em 1911, que organizou os sertanejos e se rebelou contra uma grande desapropriação de terras promovida pelo governo. O monge, que também considerava a república uma “lei do diabo”, morreu ainda no início dos conflitos. Ele foi sepultado sob tábuas para facilitar sua volta após uma aguardada ressurreição, com a qual traria um “exército encantado”.

Os revoltosos tiveram então outros líderes, inclusive uma menina de onze anos que dizia ter sonhado com José Maria e uma de quinze que se tornou líder após afirmar que estava recebendo orientações espirituais do falecido monge. O movimento também envolveu uma declaração de guerra santa, a instituição de uma “monarquia celestial” e o estabelecimento de “cidades santas”. As derrotas finais ocorreram graças à superioridade estratégica do exército, que passou a evitar o confronto direto e a bloquear os canais de abastecimento dos revoltosos, levando muitos sertanejos a deixarem o conflito.

Esses dois casos mostram situações nas quais populações isoladas e excluídas recorrem a líderes messiânicos para encontrar esperança e orientação. Sem voz e sem amparo econômico, elas permitiram que os “profetas” ocupassem o vácuo no poder. Rapidamente, eles reestabeleceram alguma forma respeitável de autoridade e passaram a ser os principais pontos de referência em seus respectivos locais. Não se tratou apenas de ensinamentos religiosos e discursos inflamados, mas também de atos de caridade e coordenação de esforços em nome do bem comum. E assim, suas palavras se tornaram uma nova lei, em um claro exemplo de acolhimento e dominação.

Fenômenos semelhantes continuam ocorrendo na atualidade. Se antes os líderes de seitas precisavam isolar os seguidores do resto do mundo ou encontrar uma população que já estava isolada e carente, agora o isolamento físico não é mais necessário: as pessoas aprenderam a se isolar em bolhas de comunicação nas mídias sociais. Tudo o que o líder precisa fazer é capturar a atenção de pessoas que possuem as mesmas fragilidades, ainda que elas estejam espalhadas pelo país ou pelo mundo. Uma das ferramentas ideais para isso é o WhatsApp, que já foi utilizado para criar “realidades alternativas” tanto no Brasil quanto na Índia, como reportado no livro A Máquina do Ódio (resenha aqui).

Depois de meses ou semanas expostas estritamente a um determinado tipo de conteúdo em grupos de bate-papo, o que as pessoas aceitam como verdade ou mentira pode mudar radicalmente. Uma vez que elas passam a acreditar em uma nova realidade, elas só vão querer acreditar na nova realidade, rejeitando qualquer informação que seja contraditória ao que é postado nos grupos. De repente, mesmo ideias como as de “monarquias celestiais” e as de fim do mundo com data marcada (ou mesmo a terra plana) parecem razoáveis e perfeitamente plausíveis.

No Brasil atual, o maior exemplo disso é a realidade alternativa que o presidente Jair Bolsonaro, com a ajuda de seu “gabinete do ódio”, montou para seus seguidores. O presidente age transparentemente como um típico líder de seita, sendo capaz de mentir sobre fatos fáceis de verificar e ainda assim sendo aclamado e respeitado. Outras características que o colocam nessa classificação são: é imaturo, controlador e paranoico, sempre alertando contra “inimigos” misteriosos; diz que ele e seus aliados são as únicas pessoas nas quais os seguidores podem confiar; promove uma mentalidade de “nós contra eles”; não aceita críticas e questionamentos, nem mesmo de seus seguidores, de quem exige obediência e fidelidade absolutas.

Há quem argumente que um de seus principais rivais políticos, o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva, é de alguma forma equivalente. Porém, o comportamento público de Lula é muito mais contido e responsável, apesar de já ter incentivado o “nós contra eles” em muitos discursos do passado. Seu caso está mais próximo ao do líder carismático que não consegue controlar o fanatismo de sua base de apoio, como na vez que ele estava se entregando para a Polícia Federal e os apoiadores impediram que seu carro saísse do prédio onde estava. A semelhança entre ele e Bolsonaro é que ambos são vistos não como homens, mas como “mitos” por parte de seus seguidores; a diferença é que Bolsonaro incentiva essa visão, enquanto Lula se limita a não contradizê-la categoricamente.

A admiração cega da qual os dois políticos usufruem em diferentes graus revela muito mais sobre o povo brasileiro do que sobre eles. Parte da população segue sem voz e sem assistência social, recorrendo a sentimentos extremos e pensamento mágico para encontrar algum tipo de esperança ou salvação. A solução para esse problema não é tentar evitar que os líderes messiânicos surjam, mas sim tentar evitar que eles encontrem uma população tão desamparada que está disposta a segui-los cegamente.

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