Incels, Solteironas e Eleanor Rigby
Apesar da epidemia de solidão que tem chamado a atenção nos últimos anos, ao longo da História da humanidade sempre existiram homens e mulheres solitários. Seja em estudos das vidas de pessoas reais ou em personagens fictícios da literatura, é possível perceber que há muito tempo existem pessoas que não se encaixam nos padrões sociais esperados de relacionamentos românticos ou de formação de famílias.
Um exemplo está na canção Eleanor Rigby, dos Beatles, cuja letra fala sobre uma mulher que vive sozinha e que, aparentemente, morre sozinha. Seu enterro é conduzido pelo padre McKenzie, outra figura solitária cuja existência intriga o eu lírico da canção. Para o autor, esses personagens representam um mistério. De onde eles vieram? A qual lugar pertencem? Por que se importam com os pequenos detalhes que ninguém mais irá ver?
A canção não esclarece se Eleanor Rigby já foi casada ou se já viveu grandes amores, mas deixa implícito que ela ainda espera que algum sonho romântico se realize. Talvez, como muitas pessoas na vida real, ela jamais esteve em um relacionamento de longa duração ou jamais se sentiu verdadeiramente amada.
Amores Sociais
É importante notar a diferença entre os padrões de comportamento estabelecidos pela sociedade e a ampla variedade de tipos de personalidade. Se Eleanor Rigby é vista como uma espécie de exceção, é porque existe uma estrita trajetória de vida que uma pessoa precisa seguir para ser considerada “normal”: estudar, se casar, trabalhar, ter filhos e envelhecer. Se der tudo certo, a pessoa verá esse ciclo se repetir e talvez ajudará a cuidar dos netos.
As pessoas que estão passando por esse ciclo e que só conhecem essa realidade (e que dificilmente refletem sobre ela) geralmente não conseguem compreender as que não se encaixam nesse padrão. Para algumas delas, quem não está nessa trajetória precisa corrigir isso. Nos piores casos, a não conformidade pode fazer com que os “anormais” sejam vistos como pessoas que fracassaram em suas trajetórias de vida.
Porém, a realidade nos informa que outras trajetórias podem ser tão válidas quanto aquela considerada padrão, mesmo que seja uma trajetória mais solitária. Por mais que muitas pessoas acreditem que existam regras universais que governam os relacionamentos humanos, a verdade é que esses relacionamentos dependem acima de tudo das características e das experiências pessoais de cada pessoa. Em outras palavras, existe mais do que uma única forma correta e saudável de se viver a vida e de se relacionar com os outros.
O comportamento considerado padrão geralmente descreve pessoas extrovertidas e neurotípicas, ignorando uma significativa parte da experiência humana. Dessa forma, é criada uma pressão social para que todas as pessoas tentem se encaixar nesse padrão, mesmo se elas forem introvertidas ou se estiverem em algum ponto do espectro autista, por exemplo. Só a categorização MBTI apresenta dezesseis diferentes tipos de personalidades, sendo oito deles de natureza introvertida. Isso pode levar a muitos anos de frustração, com muitas pessoas diferentes tentando se encaixar em uma mesmo tipo de personalidade.
Isso também é válido para pessoas LGBTQIA+, que, historicamente, sempre se sentiram pressionadas para se encaixar em comportamentos heteronormativos e não podiam expressar seus afetos publicamente. Essa pressão social resultou (e ainda resulta) em casamentos infelizes ou de fachada, já que, em alguns tempos ou lugares, a única forma de ser considerado um membro respeitável da sociedade era estar em um casamento heterossexual. Essa vontade (ou necessidade) de ser aceito como “normal” também leva várias pessoas a tentarem reprimir a própria sexualidade.
Diante de tudo isso, percebe-se que os relacionamentos românticos não se tratam apenas de fatores afetivos, mas também de fatores de projeção social. Isso pode criar limitações mesmo para pessoas extrovertidas e neurotípicas, especialmente quando elas estão mais preocupadas com a imagem que irão projetar ao lado de um possível parceiro(a) do que com genuínas conexões afetivas.
Jejum de Amor
Mas o mistério de Eleanor Rigby também pode estar ligado a possíveis limitações emocionais. Por exemplo, os casos de pessoas que jamais se sentiram genuinamente amadas e acolhidas são mais comuns do que se imagina. Pode-se dizer que essas pessoas cresceram traumatizadas não por eventos que ocorreram, mas sim por eventos e situações que jamais estiveram presentes em suas vidas. Assim, elas acabam chegando à vida adulta sem saber como estabelecer conexões emocionais saudáveis e satisfatórias.
A atrofia emocional e a imaturidade emocional são dois resultados possíveis. Dessa forma, comportamentos que ocorrem naturalmente ou mesmo inconscientemente para parte das pessoas podem ser quase impossíveis para quem não recebeu afeto e atenção suficientes durante a infância. Isso pode levar ao desenvolvimento de características que podem até ter algumas conotações positivas, mas que também dificultam a formação de vínculos emocionais duradouros. Algumas dessas características são:
- Independência e dificuldade em confiar em outras pessoas: Se durante a infância você aprendeu que não pode contar com as pessoas ao seu redor, não é durante a vida adulta que você vai começar a fazer isso. Esse aspecto também pode aumentar a sua resiliência, já que desde cedo você aprendeu sozinho a superar frustrações e sofrimentos, sem esperar pela ajuda dos outros.
- Dificuldade em manifestar emoções: Muitas vezes, os pais não são abusivos ou negligentes, mas preferem formas alternativas de expressar o seu afeto. Por exemplo, no caso de pessoas que vieram da pobreza, focar no trabalho e tentar garantir que os filhos jamais passem por dificuldades financeiras ou alimentares pode ser uma grande prova de amor. Porém, isso também pode significar que a criança não irá receber níveis saudáveis de atenção e não irá desenvolver as habilidade necessárias para manifestar suas emoções na idade adulta.
- Perfeccionismo e busca por validação: Por não se sentirem dignas de amor, essas pessoas podem cair na armadilha de estarem o tempo inteiro em busca de aprovação, reconhecimento e elogios de quem estiver ao seu redor. Sem essas garantias externas, tudo o que lhes resta é uma baixa autoestima e a impressão de que jamais serão amadas. Isso também as leva a serem perfeccionistas e altamente exigentes consigo mesmas, o que pode causar estresse e ansiedade.
- Capacidade de orientar e de ser empático: Por conhecerem muito bem as dificuldades emocionais presentes na vida adulta, algumas pessoas desenvolvem uma ótima capacidade de compreender e de aconselhar pessoas que estão passando por momentos difíceis. Porém, se exagerada, essa característica pode levar a um complexo de salvador.
- Narcisismo e agressividade: Por outro lado, algumas outras pessoas que jamais receberam afeto suficiente podem se tornar completamente incapazes de reconhecer e compreender as dificuldades de outros seres humanos. Isso revela um altíssimo nível de insegurança e fragilidade, já que a pessoa está sempre tentando garantir os próprios interesses e não está disposta a ceder nada para ninguém.
- Medo de intimidade: A constante busca por aprovação e perfeccionismo pode fazer com que a pessoa tenha medo de ser vista em sua completude, com todas as suas qualidades, todos os seus defeitos e todas as suas imperfeições. Dessa forma, a intimidade pode parecer algo exótico e intimidador. Por mais estranho que pareça, a pessoa pode estar acostumada com uma desconfortável zona de conforto.
Pessoas diferentes vão exibir diferentes níveis de cada uma dessas características e vão manifestar diferentes “sintomas” causados por elas.
Algumas pessoas vão canalizar 100% de suas energias para a vida profissional, ou para a prática de esportes, ou para causas sociais e políticas. Outras vão se tornar obcecadas por terem uma imagem perfeita, seja física (por meio de exercícios físicos, procedimentos estéticos, pílulas para emagrecimento, etc.) ou sociais (ativismo, voluntariado, filantropia, etc.). Nos piores casos, esses aspectos podem se manifestar como vícios ou como fanatismo religioso ou político.
Tudo isso revela pessoas que estão o tempo inteiro tentando provar para si próprias que merecem ser amadas. Para elas, quando a imagem estiver perfeita, a pessoa certa vai aparecer e todos os seus problemas estarão resolvidos. Essa ideia pode se tornar obsessiva, levando a pessoa a acreditar em uma “solução mágica” que vai resolver todos os seus problemas.
Incels e Solteironas
Toda essa inadequação possui efeitos diferentes sobre homens e mulheres, e eles não são constantes ao longo do tempo.
Um dos estigmas mais antigos é relacionado às mulheres que nunca se casaram. Enquanto se considera que homens “solteirões” estão “aproveitando a vida”, mulheres solteiras depois dos 30 ou dos 40 anos de idade eram chamadas de forma depreciativa de solteironas. A ideia era que nessas faixas etárias as mulheres já deveriam ter garantido um marido e vários filhos, levando muitas delas a um certo desespero quando essas idades se aproximavam e elas ainda não haviam cumprido essa “obrigação”.
Hoje em dia, por mais que essas pressões existam em diferentes níveis em diferentes lugares, essa solteirice feminina pode ser vista como um sinal de independência e liberdade. Não há a obrigação, mas sim o desejo de encontrar alguém com quem elas possam compartilhar a vida e, talvez, ter filhos. Porém, além das possíveis dificuldades citadas na seção anterior, há outros desafios na atualidade.
Para os homens, o estigma não está em ser solteiro, mas sim em não ter uma vida sexual ativa. Foi por isso que se popularizou na Internet o conceito de incel, palavra derivada do termo “celibatário involuntário”. Diante da frustração por não conseguirem encontrar parceiras sexuais, os membros de grupos de incels direcionam sua agressividade contra o feminismo e contra as mulheres em geral, culpando-as por suas próprias limitações.
Nessa entrevista, o pesquisador Scott Galloway e a entrevistadora Katty Kay discorrem sobre os vários pontos de vista e sobre as muitas variáveis (econômicas, sociais, midiáticas, etc.) presentes na atual situação dos relacionamentos entre homens e mulheres. Uma das conclusões é que, enquanto as jovens mulheres vão ficando mais bem-sucedidas financeiramente, os homens jovens vão se tornando economicamente e emocionalmente inviáveis.
Em um dos trechos, Galloway diz:
A solidão é um problema para ambos os gêneros, mas parece ser especialmente difícil para os homens jovens. Para eles, a falta de um relacionamento romântico parece ser especialmente prejudicial.
As mulheres, na falta de um relacionamento, costumam canalizar parte desta energia amorosa para suas amizades e sua carreira profissional. Mas os homens jovens tendem a canalizá-la para videogames ou pornografia, por exemplo — ou começam a se distanciar da sociedade.
A impressão que fica é que anteriormente os homens podiam contar com o desespero das mulheres como garantia de que, em algum momento, alguma delas iria aceitá-los como parceiros. Porém, à medida que as mulheres vão ficando mais independentes e menos susceptíveis às pressões sociais, são os homens que entram em desespero e não sabem exatamente o que fazer.
É claro que essa impressão cobre apenas parte das variáveis envolvidas e não é capaz de levar em conta todos os pontos expostos nas seções anteriores. A questão é que não existe como reduzir toda a complexidade e toda a subjetividade dos relacionamentos humanos a algoritmos ou fórmulas mágicas que possuam resultados previsíveis e garantidos.
Mesmo pessoas que se encaixam em todos os padrões de beleza, personalidade e comportamento podem ter dificuldades em encontrar parceiros(as) de longa data. Por mais que algumas pessoas neguem, sempre há um fator de sorte nesses assuntos. Também há um fator de esforço aplicado, mas isso vai depender da disposição de cada pessoa em investir tempo na busca por alguém que, de alguma forma, faça sentido.
Veja também:
- A Ciência da Felicidade: 10 dicas para ser mais feliz!
- Um Passeio pela Escuridão da Sexualidade Masculina
- 8 Dicas para nos Tornarmos Pessoas Melhores