Um Passeio pela Escuridão da Sexualidade Masculina


Mas eu, adolescente desventurado em extremo, tinha chegado a pedir-Te castidade e orado: “dai-me castidade e continência, mas não agora”. Pois eu temia que cedo demais Tu me ouvisses, e cedo demais me curasses da minha doença da luxúria, que eu desejava ter satisfeita ao invés de removida.
Santo Agostinho

Diante dos cada vez mais frequentes ataques violentos realizados por jovens homens que se auto-denominam “celibatários involuntários“, vários estudiosos e parte da sociedade tem voltado sua atenção para a sexualidade masculina. Esse é um assunto que vai além do escopo da saúde ou da segurança pública, já que essa é uma “força da natureza” capaz de moldar a História por meio de guerras e outros tipos de crises geopolíticas.

Uma visão compartilhada por algum desses estudiosos é de que as conquistas obtidas pelos movimentos feministas nas últimas décadas deixaram os homens para trás. Enquanto houve um esforço para se discutir e desmitificar a sexualidade feminina, o lado masculino foi esquecido ou, nos piores casos, vilificado.

Após mais um massacre em uma escola dos EUA, o autor dessa coluna de opinião no New York Times faz as seguintes colocações:

Muitos garotos estão encurralados no mesmo modelo sufocante e atrasado de masculinidade, no qual a “machidão” é medida em força; no qual não há espaço para vulnerabilidade sem emasculação; onde hombridade significa ter poder sobre os outros. Eles estão encurralados e sequer possuem a linguagem necessária para discutir como se sentem nessa situação, pois a linguagem que existe para expressar a completa amplitude das emoções humanas é vista como sensível e feminina.

Os homens se sentem isolados, confusos e em conflito sobre a própria natureza. Muitos sentem que as qualidades que os definiam – sua força, agressividade e competitividade – já não são queridas ou necessárias; pra começo de conversa, muitos outros jamais se sentiram fortes ou agressivos ou competitivos. Nós não sabemos como devemos ser, e estamos apavorados.

Boa parte dessa confusão é proveniente da ideia de que existe um “homem de verdade”, fazendo com que os homens passem a maior parte do tempo em busca da manutenção desse título. A maioria deles está desde a infância tentando provar a própria masculinidade e se defendendo contra ataques a ela. É um esforço repetitivo e cansativo, mas que passou a ser visto como parte da existência masculina e segue sendo passado para as gerações seguintes.

Um exemplo disso pode ser visto nos comentários dessa matéria, que fala sobre um curso que visa ensinar para homens violentos que as mulheres têm os mesmos direitos que eles e não são inferiores. Algumas pessoas, inclusive mulheres, comentam que um “homem de verdade” jamais seria violento com o sexo oposto e que isso é algo que eles já deveriam saber. Ou seja, na tentativa de repudiar as ações desses homens, as pessoas recorrem a questionar a masculinidade deles, colocando-os mais uma vez na posição de terem que prová-la.

Percebe-se então como esse conceito de “homem de verdade” é usado para se tentar condicionar o comportamento masculino, variando-se apenas os critérios de aceitação. Para os comentaristas mencionados no parágrafo anterior, o “homem de verdade” deve respeitar as mulheres; para outros, ele deve ter muitas conquistas sexuais; para outros, ele deve defender sua honra por meio da violência; e assim por diante.

Mas qual são as raízes de toda essa situação?

Hereditariedade

Muitos veem o comportamento masculino como uma série de escolhas estritamente morais, o que ignora sua origem natural. A sexualidade humana foi herdada de outras espécies do reino animal e, por mais que a humanidade se considere superior, retém algumas marcantes características desses ancestrais. E nem todas elas são positivas.

Muitas espécies apresentam comportamentos que seriam reprovados pela moralidade humana. Jovens leões machos podem matar a prole de uma fêmea para que ela queira acasalar novamente. Pinguins apresentam comportamentos sexuais que podem nos deixar chocados. Macacos possuem um comportamento sexual agressivo que pode ajudar a explicar parte do comportamento humano. Mesmo a prática do estupro não é exclusividade da humanidade.

Para entender como os seres humanos herdaram parte dessas tendências é importante compreender exatamente como funciona o mecanismo da Evolução.

É comum dizer que uma determinada espécie desenvolveu certa característica porque ela aumenta suas chances de sobrevivência. Por exemplo, os camelões desenvolveram a capacidade de mudar de cor para melhor se camuflarem no ambiente e, consequentemente, evitar predadores. Mas há uma séria imprecisão ao fazermos essa afirmação, pois ela causa a impressão de que em determinado momento os camelões “resolveram” desenvolver a capacidade de mudar de cor.

O que acontece é que, ao longo do tempo, todas as espécies sofrem mutações. Algumas dessas mutações podem causar a morte dos indivíduos; outras podem dá-los desvantagem na sobrevivência (por exemplo, um sapo que nasce com três pernas); porém, outras podem dá-los vantagens de sobrevivência.

O que ocorreu no caso dos camelões é que parte de seus antepassados sofreram uma série de mutações que lhes deram a capacidade de mudar de cor, dando-lhes uma vantagem evolutiva. Se essa habilidade fosse uma desvantagem, as populações que a herdaram deixariam menos descendentes, e os camelões que chegariam aos dias de hoje não teriam essa característica.

Isso é importante para a discussão sobre sexualidade porque mostra porque herdamos certas características dos animais. Por exemplo, o comportamento monogâmico representa uma vantagem evolutiva, pois a prole que é cuidada pelo casal ao invés de apenas um dos progenitores tem mais chance de sobreviver. Consequentemente, graças à atenção extra, os animais monogâmicos possuem grandes chances de deixarem descendentes.

Infelizmente, o mesmo vale para o comportamento sexual agressivo ou promíscuo. A vantagem aqui não será porque a prole terá mais atenção, mas porque ela será mais numerosa. Por exemplo, se na Europa do século XVI um casal tem dez filhos e dois deles morrem, eles ainda deixam oito descendentes. Porém, se um criminoso sexual faz vítimas em sua cidade e em outros países, e depois se torna marinheiro para fazer vítimas em outros continentes, ele vai deixar muito mais que oito descendentes, mesmo se parte de sua prole perecer devido à falta de cuidados.

Um exemplo disso (apesar de não ter indícios de comportamento criminoso) é o caso do tropeiro do século XVIII que espalhou uma mutação que causa a Síndrome de Li-Fraumeni. Durante suas longas viagens, o tropeiro parece ter deixado vários descendentes nas regiões Sul e Sudeste do Brasil, resultando em nove famílias atuais que possuem o gene defeituoso e manifestam a rara doença. Apesar da variação brasileira ser menos agressiva (o que explica a existência de tantos descendentes), muitos dos membros dessas famílias decidem não ter filhos, para não passar a característica adiante.

Básico Instinto

Vê-se então que a sexualidade humana pode ser uma força poderosa, especialmente devido a capacidade destrutiva do desejo sexual masculino. Mas o fato de que herdamos a sexualidade do mundo animal não deve servir como justificativa para o comportamento agressivo ou criminoso.

Para erguer nossas civilizações e desenvolver o nosso conhecimento, nós tivemos que ir um pouco além dos nossos instintos animais. Nós começamos a pensar de forma abstrata e desenvolvemos regras e normas de conduta necessárias para o convívio social. Entretanto, essas normas podem entrar em conflito com nossos instintos.

Uma clara manifestação disso é quando um agressor sexual tenta se eximir da culpa por um ataque violento. Ele pode dizer que não sabia o que estava pensando ou que um desejo incontrolável tomou conta dele, e, portanto, a culpa não seria sua. Se essa fosse uma defesa válida, um homem que mata outro durante um acesso de fúria também não poderia ser julgado e condenado pela justiça.

Algo semelhante ocorre quando se tenta culpar a vítima por uma agressão sexual. Na tentativa de racionalizar o ato violento, o agressor pode tentar justificar sua ação ao apontar as vestimentas ou o comportamento da vítima, como se esses detalhes indicassem que ela queria ser atacada. Racionalizações semelhantes podem ser usadas para se tentar explicar medos ou aversões irracionais, como quando se tenta usar a religião ou a ciência para justificar racismo, homofobia e afins.

O ponto central aqui é que as atuais estruturas sociais da nossa civilização não estão preparadas para lidar com a agressiva intensidade do desejo sexual masculino. Para muitos homens, os ideais de monogamia e amor romântico não são capazes de canalizar a energia sexual da qual eles dispõem.

Os costumes e as regras sociais envolvidas no processo de conquista amorosa parecem ser complexos e trabalhosos demais para jovens cada vez mais solitários e sobrecarregados com outras atividades. Em outras palavras, muitos jovens homens querem ter uma vida sexual sem necessariamente ter uma vida social.

Isso certamente gera frustração, e ela se manifesta das mais diversas formas.

Guerra Civil

Em 2017, o produtor hollywoodiano Harvey Weinstein foi acusado por várias mulheres de ter abusado ou tentado abusar sexualmente delas, dando início a uma onda de denúncias contra outros homens poderosos da política ou da indústria do entretenimento norte-americana. O comediante Louis C.K. foi acusado de se masturbar diante de colegas de trabalho. O apresentador Matt Lauer possuía um botão em sua mesa que permitia que ele trancasse a porta de sua sala e evitasse que fosse pego em flagrante.

Esses são exemplos de como homens poderosos podem usar de sua posição não apenas para cometer abusos, mas também para intimidar e silenciar suas vítimas. Mas essa não é a única forma de violência que pode resultar da sexualidade masculina.

Em 2014, o jovem Elliot Rodger matou 7 pessoas e feriu 13 outras motivado pelas próprias frustrações sexuais. Ele queria se “vingar” das mulheres em geral e dos colegas de faculdade que tinham vidas sexuais ativas. Sozinho e rejeitado, sua frustração se transformou em ódio, explicitado em seu manifesto e na lamentável sequência de assassinatos.

Após o ataque, Elliot tirou a própria vida, o que é uma ação ainda mais comum entre rapazes solitários. Na Inglaterra, o jovem Jonny Benjamin fez um interessante depoimento depois de sobreviver a uma tentativa de suicídio. Ele levantou os seguintes números:

Segundo dados do Escritório Nacional de Estatísticas da Grã-Bretanha, 16 pessoas cometem suicídio a cada dia no país. Mas o tema continua sendo tabu na sociedade britânica.

Felizmente, houve uma redução expressiva no índice de suicídios entre mulheres, que caiu 50% nos últimos 30 anos.

Nesse mesmo período, no entanto, o número de suicídios entre homens aumentou: é o mais alto desde 1999. Suicídio é a principal causa de morte de homens com idades entre 20 e 49 anos na Grã-Bretanha. Em 2012, 4.590 homens se mataram no país.

Essa é uma tendência mundial e pode piorar. Essa longa reportagem especial do Washington Post faz um raio-x do impressionante problema do excesso de homens na Índia e na China. Ela começa dizendo:

Nada como isso já aconteceu na História humana. Uma combinação de preferências culturais, decretos governamentais e tecnologia médica moderna nos dois maiores países do planeta criou um desequilíbrio de gênero em escala continental. Existem 70 milhões a mais de homens na China e na Índia.

As consequências de se ter homens demais, agora crescidos, têm longo alcance: além da epidemia de solidão, o desequilíbrio distorce o mercado de trabalho, aumenta os índices de poupanças na China (diminuindo o consumo), inflaciona artificialmente o preço de certas propriedades, e paralelamente aumenta os crimes violentos, o tráfico ou a prostituição em um número cada vez maior de lugares.

esse artigo da The Economist relaciona a prática da poligamia com o aumento da possibilidade de violência e da eclosão de guerras civis:

A poligamia quase sempre significa que os homens ricos terão várias esposas. E se cada um dos 10% mais ricos se casar com quatro mulheres, então os 30% mais pobres não poderão se casar. Isso geralmente os deixa não apenas sexualmente frustrados mas também socialmente marginalizados. Em muitas sociedades tradicionais, um homem não é considerado adulto até ter encontrado uma esposa e ter filhos.

Para conseguir uma esposa, ele tipicamente deve pagar um dote para o pai dela. Quando a poligamia cria uma escassez de noivas, o valor desse dote aumenta significativamente. No Sudão do Sul, ele fica entre 30 e 300 cabeças de gado, o que é muito mais do que um homem com baixo nível educacional pode acumular por meios legais.

(…)

Grupos terroristas também exploram isso. Um membro do grupo paquistanês Lashkar-e-Taiba, que executou o ataque em Mumbai em 2008 que matou 166 pessoas, disse que se juntou a organização porque ela prometeu pagar pelo casamento de seus irmãos. Durante seus dias de ouro, o auto-denominado Estado Islâmico oferecia luas de mel para seus recrutas em Raqqa, sua então capital. No norte da Nigéria, onde a poligamia é abundante, o Boko Haram ainda arranja casamentos baratos para seus recrutas.

Educação Sexual

Independente de os problemas serem no nível doméstico ou continental, a educação sexual sempre é uma boa abordagem. Um estudo liberado pelo Ministério da Saúde em 2018 indica que a maioria dos casos de abuso de crianças e adolescentes ocorrem no ambiente familiar, e são realizados por parentes próximos ou pessoas que convivem com as vítimas. O texto afirma:

[Consideramos] que esse maior envolvimento como perpetradores das violências sexuais contra estes grupos pode ser reflexo da afirmação de uma identidade masculina hegemônica, marcada pelo uso da força, provas de virilidade e exercício de poder sobre outros corpos. Dessa forma, é relevante a promoção de novas formas de masculinidades que superem esse padrão e permitam a manifestação de diversas identidades possíveis.

É a educação que vai dar aos garotos as ferramentas necessárias para que eles reflitam sobre e controlem seus impulsos sexuais, ao invés de simplesmente obedecê-los e tentar racionalizá-los posteriormente. Ela também vai ajuda-los a manifestar seus sentimentos e necessidades de forma clara e não-violenta.

Uma masculinidade que precisa estar sendo provada e reafirmada o tempo inteiro é, acima de tudo, uma masculinidade frágil. Mas abandonar esse modelo também não é uma tarefa simples, e ela vem com desafios que precisam ser abordados o quanto antes: como convencer os homens que há uma opção melhor ao que lhes foi ensinado desde tenra idade? Como eles podem oferecer para seus filhos a atenção e o cuidado que eles jamais receberam?

O autor da coluna citada no início desse post termina seu texto com a seguinte afirmação:

Eu não estou defendendo uma solução rápida. Não há uma. Mas temos que iniciar essa conversa. Os garotos estão quebrados, e eu quero ajudar.

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