Crítica: Não! Não Olhe!

Nope, EUA, 2022



Trailer · Filmow · IMDB · RottenTomatoes

★★★★☆


Dentre os muitos filmes sobre a realização de filmes (que inclui exemplares como Mank e Era Uma Vez em… Hollywood), Não! Não Olhe! é um dos mais estranhos. Isso se dá não apenas devido à mistura de gêneros e de premissas, mas também pela forma críptica e indireta com a qual o diretor Jordan Peele aborda a temática principal: a nossa obsessão com o espetáculo. O diretor também inclui algumas ótimas referências às origens do cinema e a clássicos da ficção científica, formando um redemoinho de temas e simbolismos que pode agradar aos fãs da sétima arte e confundir o público em geral.

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Depois de cada desenvolvimento, é difícil saber o que esperar das cenas seguintes de Não! Não Olhe!. Uma morte misteriosa estabelece um clima de suspense, enquanto um ataque animal parece permeado de tons sobrenaturais. Posteriormente, os estranhos eventos que cercam a aparição de um OVNI nos preparam para uma possível presença alienígena, lembrando filmes como Sinais e A Vastidão da Noite. Por fim, há também os momentos mais “filme de monstro”, o que nos remete a produções como O Ataque dos Vermes Malditos e Um Lugar Silencioso.

Tudo isso emana da experiência dos irmãos OJ (Daniel Kaluuya) e Emerald Haywood (Keke Palmer), que, depois de desvendarem o mistério por trás das mortes e desaparecimentos que estão ocorrendo nos arredores do rancho da família, decidem que a melhor coisa a fazer é… filmar o OVNI e obter fama e dinheiro com a descoberta. Alertar as autoridades e tentar explicar a situação para evitar mais perdas de vidas seria a atitude ideal, mas também seria a menos lucrativa.

Quem também tenta lucrar com a situação é Jupe (Steven Yeun), um showman que tenta transformar as aparições do OVNI em uma atração em seu parque de diversões. Ele acredita ter uma conexão especial com o objeto por ter sobrevivido a um ataque animal durante sua infância como ator mirim, quando foi poupado por um chimpanzé que atacou vários de seus colegas de cena.

O que ele não entende é que sua sobrevivência provavelmente se deu por dois fatores. Em primeiro lugar, o chimpanzé o via como um igual, acreditando que o pequeno Jupe estava na mesma situação que ele, sendo explorado em nome do entretenimento.

Em segundo lugar, Jupe jamais faz contato visual direto com o chimpanzé durante o ataque, pois, mesmo durante o caos, o garoto está focado em um sapato que fica inexplicavelmente de pé no meio do estúdio. Isso evita que o animal o veja como uma ameaça e salva a sua vida. Ironicamente, essa tragédia também é explorada comercialmente por Jupe na idade adulta, transformando seu próprio trauma em um espetáculo para o público pagante.

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Peele também inclui em Não! Não Olhe! alguns outros personagens que reforçam a ideia principal. Angel Torres (Brandon Perea) é um técnico de filmagem que fica obcecado em descobrir o que os irmãos Haywood estão tentando filmar. Os irmãos também contam com a ajuda do renomado diretor Antlers Holst (Michael Wincott), personagem que parece ser inspirado nos trejeitos e obsessões do lendário cineasta Werner Herzog, de filmes como Aguirre, a Cólera dos Deuses e Visita ao Inferno (cujo trailer dá uma ideia do estilo do diretor).

Nos dois casos, há a obsessão em capturar em vídeo algo que jamais foi capturado antes, sempre com o objetivo de obter fama e reconhecimento. É emblemático que o plano da grande filmagem quase é completamente arruinado pela presença de uma figura sinistra e ameaçadora: um repórter do site de fofocas TMZ, creditado como Ryder Muybridge (Devon Graye).

A representação desse “jornalista” tenta realçar (e satirizar) o lado mais predatório da atuação desse tipo de site, que tenta transformar os problemas e as tragédias pessoais das celebridades em espetáculos para um público ávido e “faminto” por fofocas. Em Não! Não Olhe!, há vários “espectadores” que consomem com (e são consumidos por) olhares predatórios.

Diante desses temas, Peele aproveita para realizar uma homenagem à linguagem cinematográfica, misturando as origens históricas das técnicas de projeção de imagens em movimento com a fictícia árvore genealógica da família Haywood. A trama faz referência ao trabalho de Eadweard Muybridge (veja que esse também é o sobrenome do repórter do TMZ), que produziu um dos primeiros filmes em movimento da História, O Cavalo em Movimento.

Entretanto, as imagens utilizadas no início de Não! Não Olhe! (ao lado) são de outro filme, que só foi animado em 2006, também com base em imagens capturadas por Muybridge.

Uma vez que a trama estabelece que o primeiro filme já produzido foi “estrelado” por um homem negro montado em um cavalo (na vida real, a identidade do jóquei jamais foi confirmada), nada mais apropriado do que terminar Não! Não Olhe! com cenas semelhantes. Depois de todo o suspense, terror e comédia, a produção tem um ato final caprichado nas grandiosas cenas de ação, provendo um espetáculo para os olhos do espectador.

Para os conhecedores, Peele inclui uma óbvia referência à icônica cena da moto deslizando no clássico da animação Akira. Essa talvez seja a primeira referência àquela cena em live action, depois de décadas de referências em outras animações. Vale lembrar que em 2017 Peele se recusou a fazer um remake da icônica animação, afirmando que prefere trabalhar em projetos originais.

O importante é que Peele continua utilizando a linguagem cinematográfica para realizar mergulhos ousados e excêntricos em temas de seu interesse. Em Corra!, ele mostrou o terror que pode emergir a partir de um determinado tipo de racismo, enquanto em Nós o terror vem de uma estranha representação da realidade criada pelas desigualdades sociais. Em Não! Não Olhe!, o terror vem da curiosidade mórbida dos espectadores e da obsessão que nós temos de fazer do sofrimento alheio uma fonte de espetáculo.

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