The Pitt: A Vida e a Morte no Império das Consequências


O principal elemento que diferencia The Pitt de séries como Plantão Médico, House e Grey’s Anatomy é um ritmo narrativo que mantém o espectador imerso em um dia da rotina de uma sala de emergência. Cada um dos quinze episódios da primeira temporada cobre uma hora do longo turno de uma sexta-feira, com o primeiro episódio começando às sete horas da manhã e os momentos finais do último se passando por volta das dez da noite desse mesmo dia. Mesmo nesse limitado intervalo de tempo, a série apresenta situações e constrói dramas que tocam em relevantes temas sociais, políticos e até mesmo filosóficos.

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Nesse intervalo de quinze horas, a série mostra como inúmeras questões sócio-políticas se manifestam no dia a dia dos profissionais de saúde de uma sala de emergência. O que para muitas pessoas são apenas questões de opinião ou de posicionamento político, para eles são questões de vida ou morte em momentos de crise nas vidas de muitos pacientes. Esse é um ambiente de trabalho no qual as consequências de leis, de políticas públicas e de escolhas pessoais se concretizam de formas altamente dramáticas.

Obviamente, por se passar na cidade americana de Pittsburgh, os temas tratados são mais comuns na sociedade dos EUA, apesar de possuírem equivalentes no Brasil e em outros países. Nesse sentido, a trama de The Pitt nos lembra de várias situações presentes no noticiário, como os casos de mulheres grávidas que morrem devido a criminalização do aborto e a volta do sarampo devido à baixas taxas de vacinação, além da “epidemia” de ataques a tiros em escolas e outros locais públicos. A série ainda possui uma subtrama que aborda os mesmos assuntos da série Adolescência.

Já as conversas entre o protagonista Dr. Michael Robinavitch/Robby (Noah Wyle) e a administradora Gloria (Michael Hyatt) revelam os efeitos de um sistema de saúde que opera tendo como objetivo principal o lucro. Mesmo estando no país mais rico do mundo, eles sofrem com falta de recursos, sejam materiais ou humanos. Enquanto a equipe de Robby precisa fazer o máximo possível com o espaço que possui, há alas inteiras do hospital completamente vazias por falta de funcionários. Em um dos diálogos, ele afirma que se o salário fosse bom o suficiente, as pessoas estariam fazendo fila para trabalhar lá.

Um assunto que poderia ser realçado em futuras temporadas da série (a segunda já está confirmada) são os altos valores que os pacientes (ou, do ponto de vista dos investidores, os consumidores) precisam desembolsar mesmo para tratamentos simples e como isso afeta suas decisões em momentos de crise. Além disso, a série poderia realçar o efeito que a epidemia de opioides tem sobre as salas de emergência, assunto que já foi abordado em séries como Dopesick e Império da Dor.

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Diante dessa realidade, The Pitt reforça as ações e as decisões tomadas por profissionais sobrecarregados e, muitas vezes, traumatizados, alguns dos quais estavam na linha de frente durante a pandemia de Covid-19. Nessa batalha diária contra a morte, é esperado que eles sempre tomem decisões perfeitas e nunca cometam erros, apesar de suas condições de trabalho não serem as ideais. Para piorar, eles ainda precisam lidar com pessoas que estão passando por alguns dos piores momentos de suas vidas, e algumas delas não lidam de forma “graciosa” com isso.

A série também realça as situações e as reações dos pacientes. Alguns deles precisam ficar horas e horas aguardando atendimento, já que a fila de espera não é apenas por ordem de chegada, mas também por gravidade da situação. Dessa forma, pessoas com ferimentos leves ou dores suportáveis, podem ficar até oito horas aguardando atendimento enquanto casos mais graves são passados na frente. Isso, obviamente, é muito mais culpa de decisões administrativas do que dos enfermeiros e médicos, mas são esses profissionais que precisam lidar com toda a impaciência e agressividade da sala de espera.

Os pacientes mais problemáticos são aqueles que não possuem flexibilidade cognitiva o suficiente para se adequar à situação, exigindo atenção total de profissionais que estão lidando com múltiplas emergências simultaneamente. Muitas vezes, são pessoas que estão acostumadas a serem o centro das atenções ou que só levam em conta as próprias necessidades quando tomam decisões no dia a dia. Em uma sala de espera lotada e com um limitado número de médicos e salas para atendimento, pessoas assim não conseguem compreender que há casos mais graves que precisam de atenção mais imediata.

Há também os casos de pessoas que estavam vivendo suas vidas normalmente e que, de repente, se encontram em uma sala de emergência tendo que tomar decisões de vida ou morte por si próprias ou por entes queridos. São situações que horas ou minutos antes eram impensáveis, mas que acabam se tornando a nova realidade nas vidas dessas pessoas. Mais uma vez, a flexibilidade cognitiva faz toda a diferença, já que se elas se negarem a encarar essa nova situação, podem acabar tomando decisões altamente questionáveis.

Nos piores casos, os enfermeiros e médicos precisam lidar com pessoas que parecem ter se aliado ao inimigo, insistindo em decisões que vão maximizar o sofrimento ou minimizar as chances de sobrevivência de seus entes queridos.

Por fim, a trama também realça os esforços invisíveis de pessoas que precisam cuidar sozinhas de entes queridos com necessidades especiais ou em idade avançada. É um tipo de situação que pode se tornar cada vez mais comum e que não pode ser tratada apenas por meio da abertura de mais lares para idosos, exigindo políticas públicas que visem equilibrar custos públicos com qualidade de vida tanto para os idosos quanto para seus cuidadores.

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Tudo isso faz com que The Pitt também tenha uma dimensão filosófica, nos lembrando da fragilidade de nossas vidas diante de acidentes, de atos de violência, da velhice e de problemas de saúde que nos pegam de surpresa. Por mais que muitas pessoas prefiram acreditar em explicações “esotéricas” que tiram de nós a responsabilidade por nossas vidas, a série evidencia as muitas variáveis relevantes em momentos de crise que podem comprometer a nossa qualidade de vida ou que podem representar o nosso fim.

O consumo de drogas (legais ou ilegais), a vacinação de crianças e adultos, a crença em teorias da conspiração, a prática de exercícios físicos, a alimentação saudável, o consumo de água, a posse de armas… Todos esses fatores e muitos outros podem ser decisivos para definir se vamos ou não parar em uma sala de emergência superlotada. Se isso acontecer, é importante lembrar que não há como os profissionais de saúde reverterem anos de comportamentos nocivos com alguns remédios ou outros tipos de tratamento emergencial.

Uma vez que você chega em uma sala de emergência, há ainda outras variáveis a serem levadas em conta: qual a gravidade da emergência, o quão boa foi a capacitação dos profissionais, o quão experientes eles são, a quais recursos de tratamento e diagnóstico eles têm acesso, qual a carga de trabalho deles. Muitas vezes, tudo o que eles poderão fazer é aplicar o tratamento que maximize as suas chances de sobrevivência e esperar para ver qual será o resultado, o que ocorre algumas vezes na série.

Todas essas variáveis deveriam ser preocupações constantes para o poder público e para a sociedade em geral, já que não adianta se preocupar com todas elas apenas depois que a situação se tornou uma emergência.

Assim como filmes de terror podem servir como preparação para grandes crises, The Pitt é uma série que pode começar a preparar as pessoas para certas emergências da vida real. Mais que isso, a trama nos oferece muitos incentivos para tentar evitar essas emergências, seja por meio de políticas públicas ou por meio de cuidados pessoais. O que ela nos evidencia de forma crua e razoavelmente realista é que as escolhas que fazemos no dia a dia podem resultar em consequências com as quais nós não temos como negociar.