Crítica: A Queda da Casa de Usher

The Fall of the House of Usher, EUA, 2023



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★★★★☆


Ainda nos primeiros minutos do primeiro episódio da minissérie A Queda da Casa de Usher fica claro que todos os seis filhos do magnata Roderick Usher (Bruce Greenwood/Zach Gilford) faleceram em um curto período de tempo. O que mantém o interesse do espectador ao longo dos episódios seguintes é entender não apenas o como mas também o porquê de tamanha tragédia ter se abatido sobre essa família. Como era de se esperar, essa trama do roteirista e diretor Mike Flanagan faz uso de elementos sobrenaturais para traçar comentários sobre temas extremamente relevantes no mundo real.

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Em primeiro lugar, é fantástico ver como Flanagan harmoniza os temas específicos da minissérie com vários dos contos de terror do autor Edgar Allan Poe. O roteirista utiliza elementos do conto A Queda da Casa de Usher como enquadramento principal para “adaptar” outros contos (A Máscara da Morte Rubra, Os Assassinatos da Rua Morgue, O Gato Preto, O Coração Revelador, O Escaravelho de Ouro, O Poço e o Pêndulo e O Corvo) e para contar uma história sobre a natureza humana e sobre um grave problema social. Assim como em Missa da Meia-Noite, o verdadeiro terror não emana de entidades sobrenaturais, mas sim de certos aspectos da psicologia humana.

É também no primeiro episódio que a estrutura geral da narrativa é estabelecida. Em uma noite escura e chuvosa, dois homens se sentam nas poltronas de uma casa abandonada. Enquanto barulhos estranhos podem ser ouvidos saindo do porão, o anfitrião insiste que o convidado se concentre nas histórias que ele está prestes a lhe contar. O que Roderick Usher promete ao promotor C. Auguste Dupin (Carl Lumbly/Malcolm Goodwin) é não apenas uma explicação sobre a morte de seus filhos, mas também confissões de todos os crimes pelo qual ele havia ficado impune nas últimas décadas.

Quase todas as histórias são marcadas pela presença de Verna (Carla Gugino), uma mulher misteriosa que claramente é uma entidade muito mais antiga e muito mais poderosa do que parece. Muitos espectadores podem vê-la como uma encarnação da morte rondando a casa de Usher, mas essa interpretação não se encaixa muito bem nas ações da personagem. Uma encarnação da morte mais apropriada é mostrada na série Sandman, na qual a personagem tem a singela missão de levar as pessoas cuja hora chegou. Para ela, a morte não é um castigo, mas uma parte do ciclo da vida.

Por outro lado, Verna aparece na vida da família Usher para cobrar uma dívida e para punir os comportamentos abusivos dos herdeiros de Roderick. Ela é, antes da mais nada, uma manifestação das consequências das ações da família. Os irmãos Roderick e Madeline Usher (Mary McDonnell/Willa Fitzgerald), com a ajuda do implacável advogado e operador Arthur Pym (Mark Hamill), estão há várias décadas sem sofrer nenhuma consequência pelo lado mais nefasto de seus negócios. De repente, todas as consequências chegam de uma só vez.

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Os negócios da família Usher estão não apenas na indústria farmacêutica, mas também no centro da epidemia causada pelo consumo de opioides nos EUA e em outras partes do mundo. Assim como a família no centro da série Succession reflete uma poderosa família da vida real, os Ushers são um reflexo da família Sackler, controladora da extinta Pardue Pharma. Em 1995, a corporação lançou no mercado o analgésico OxyContin, um poderoso e viciante o opioide que viria a destruir as vidas de milhões de pessoas.

Esse tema já foi tratado nas minisséries Dopesick e Império da Dor, além do filme Máfia da Dor. Na vida real, os Sacklers conseguiram imunidade criminal depois de fazer um acordo com a justiça dos EUA e de pagar um grande valor aos milhares de queixantes. Mesmo depois dos bilhões pagos, a família ainda vai usufruir dos muitos outros bilhões que acumularam ao longo dos anos em que venderam uma droga altamente viciante.

O que A Queda da Casa de Usher faz é imaginar que, de uma forma ou de outra, as muitas pessoas que acumularam fortuna vendendo OxyContin irão arcar com as consequências de seus atos. Indo além, o episódio final também ressalta a facilidade com a qual Roderick e Madeline aceitam um acordo que não seria pago por eles, mas sim por seus descendentes. Os lucros e a impunidade estão garantidos; a continuidade da casa de Usher nem tanto.

Dessa forma, a trama também serve como um comentário sobre o capitalismo e sobre como as grandes corporações desconsideram as consequências de seus negócios para as gerações futuras. Indústrias como a farmacêutica e a petroleira trabalham tendo em vista os lucros no curto, médio e longo prazo, mesmo que isso signifique despedaçar o tecido social com drogas viciantes e desequilibrar o clima do planeta de uma forma que pode comprometer a sobrevivência das próximas gerações.

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Essa falta de visão revela a relação entre o capitalismo e a psicologia humana. Enquanto muitas pessoas acham que esse sistema econômico é uma grande conspiração mantida pelos donos do poder, ele é muito mais uma consequência “natural” dos piores instintos humanos. O capitalismo não precisa de completos psicopatas no topo da pirâmide, mas apenas de pessoas traumatizadas e/ou desesperadas o suficiente para desconsiderar as consequências de suas ações sobre as vidas de outras pessoas.

Como em muitas histórias reais e fictícias de pessoas que saíram da pobreza e chegaram ao topo de grandes organizações, Roderick e Madeline não sentem nenhuma compaixão por quem ficou para trás. Eles se comparam a reis e rainhas, mas, no fim das contas, ainda são “crianças” assustadas e traumatizadas tomando decisões simplistas e medíocres em busca da segurança que nunca tiveram enquanto cresciam. Eles dizem estar em busca de grandeza e eternidade, mas estão sempre tentando se eximir de qualquer responsabilidade.

É diante dessa realidade que um terror visceral consome a casa de Usher. Os descendentes de Roderick poderiam partir de forma pacífica e tranquila, mas Verna decide punir cada um deles por seus crimes e por seus vícios. Mesmo os Ushers que só conheceram o pai e sua fortuna depois de crescidos estão mais preocupados em atingir o sucesso pessoal e em cometer excessos do que em fazer uma diferença positiva no mundo que eles irão deixar para as futuras gerações.

Com várias performances hipnotizantes, A Queda da Casa de Usher é uma história de terror que funciona nos mais diversos níveis. Além dos aspectos mencionados nos parágrafos anteriores, há ainda outras camadas e outras sutilezas que podem ser apreciadas nesses oito ótimos episódios. Há aqui uma intensidade e uma assertividade que tornam a minissérie um divertido e envolvente exercício narrativo, enquanto também fazem dela um veículo de retaliação em nome das milhões de vítimas de uma catástrofe humanitária perfeitamente evitável.

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