Coronavírus: Liberdade e Responsabilidade
Em 1904, em meio a um já conturbado cenário social, a promulgação de uma lei que tornava obrigatória a vacinação de todo o povo brasileiro levou à eclosão da Revolta da Vacina no Rio de Janeiro. O governo, que foi forçado a suspender a medida, decretou estado de sítio e reprimiu violentamente os revoltosos, especialmente a população mais pobre. Posteriormente, apesar da adoção de medidas de conscientização, a cidade sofreu com uma epidemia de varíola que deixou mais de 6000 mortos, em 1908.
Essa e outras histórias passaram a ser lembradas durante a pandemia de COVID-19, e uma delas ilustra muito bem o embate entre liberdades individuais e bem-estar coletivo.
A irlandesa Mary Mallon, que é até hoje conhecida como Maria Tifoide, era uma portadora assintomática da bactéria causadora da febre tifoide. Depois de emigrar para os EUA, ela foi responsável por surtos da doença nas casas de família onde trabalhava como cozinheira, em Nova York. Sua condição foi descoberta pelo engenheiro sanitário George Soper, que descobriu que Mallon era o único fator em comum entre os surtos isolados, apesar de ela não apresentar os sintomas da doença.
Porém, Mallon jamais aceitou esse diagnóstico e não cooperava com as autoridades. A ideia de que ela, uma pessoa que jamais teve a febre tifoide, estivesse transmitindo a doença lhe parecia absurda. Ela chegou a reagir violentamente às “acusações” e aos pedidos de Soper, que lhe descreveria posteriormente como teimosa, indignada e perversa. Um tempo depois, ela foi levada à força para um dos hospitais da cidade, dando muito trabalho para quatro policiais e para a médica Josephine Baker, que sentou sobre Mallon para mantê-la parada durante o trajeto da ambulância.
O caso foi e continua sendo controverso porque, mesmo sem ter cometido nenhum crime, Mallon teve sua liberdade restringida por longos 26 anos, até sua morte. Em 1907, por fatores que estavam além de seu controle, ela foi considerada uma ameaça à saúde pública e colocada sob uma quarentena forçada. Em 1909, Mallon teve uma audiência na Suprem Corte dos EUA, mas seu pedido de liberdade foi negado. Ela só seria liberada dessa primeira internação em 1910, sob a condição de tomar medidas para evitar infecções (como lavar a mão após usar o banheiro, o que não era tão comum na época) e jamais voltar a trabalhar como cozinheira.
Um tempo depois, Mallon voltou a trabalhar como cozinheira. Ela trabalhou como lavadeira por alguns anos, mas esse tipo de serviço não pagava tão bem quanto o da cozinha. Em 1914, ela saiu do radar das autoridades sanitárias e passou a utilizar nomes falsos para continuar cozinhando. Como as agências de emprego que forneciam funcionários para as famílias ricas já a conheciam, Mallon passou a trabalhar em restaurantes, hotéis e hospitais, causando surtos de febre tifoide na maioria deles.
Em 1915, Soper conseguiu mais uma vez rastreá-la quando foi chamado para ajudar a investigar um surto da doença em um hospital, onde havia 25 funcionários infectados. Quando chegou, Mallon já havia fugido, mas ele a identificou por meio das descrições dadas pelos colegas e por sua caligrafia. Ela seria capturada novamente e mais uma vez colocada sob uma quarentena forçada, que dessa vez duraria 23 anos, até sua morte em 1938. Em 1939, Soper escreveu um artigo no qual fala em detalhes sobre suas infrutíferas interações com Mallon e sobre como ela rejeitou diversas ofertas de ajuda.
Graças a Mallon, a medicina começou a conhecer os casos de pessoas assintomáticas que eram capazes de transmitir doenças. Outros casos foram descobertos, mas não receberam um tratamento tão duro quanto o dela. Ainda se discute se essa diferença se deu por causa de seu gênero e de sua origem estrangeira ou por causa de sua extrema falta de colaboração. A questão é que, assim como Mallon não estava preparada para acreditar no diagnóstico, as autoridades da época não estavam preparadas para lidar com essa peculiar situação.
Os números variam, mas estima-se que ela foi responsável por pelo menos 50 infecções e 3 mortes, uma antes de 1907 e duas dentre os funcionários do hospital. Há também estimativas de que os infectados chegaram a 122 e as mortes a 5. Tudo indica que, mesmo vendo os casos de febre tifoide subindo nos locais onde trabalhava e ouvindo os argumentos de Soper e dos demais especialistas, Mallon jamais se responsabilizou pelas infecções, entrando em um estado de negação e dissonância cognitiva que, aparentemente, duraria até o fim de sua vida.
Assim como Mallon, muitas pessoas seguem se recusando a acreditar na ameaça da COVID-19. Se antes isso se manifestava por meio da recusa do uso de máscaras e do isolamento social, hoje também se manifesta pela recusa de tomar as várias vacinas disponíveis nos postos de saúde. A grande diferença é que Mallon viveu em uma época na qual a sua condição era uma desconhecida novidade científica, enquanto os negacionistas da atualidade simplesmente escolhem acreditar nas informações mais convenientes para eles.