O Surto Psicótico da Terceira Temporada de Legion


* Contém SPOILERS da segunda temporada de Legion.

Lições sobre viagem no tempo. Capítulo Zero. Quem nós fomos não dita quem nós seremos. Mas, geralmente, é uma boa indicação. A viagem no tempo não dá a alguém a possibilidade de mudar a si próprio, mas sim a de erradicar a si próprio… e permitir que algo novo se forme no lugar do que existia. E nisso, há um certo encanto… ou loucura. Pois se nós não acreditamos na possibilidade de mudança, nós não acreditamos no tempo.

Quem não assistiu aos delírios da segunda temporada de Legion até o fim devido à narrativa lenta, errática e confusa acaba de ganhar motivos para retomar essa insana série sobre o mundo dos mutantes da Marvel. A terceira e última temporada é mais curta e focada do que a segunda, mas sem jamais perder a imprevisibilidade e a psicodelia características do material. O espectador pode continuar sem entender o que isso tudo significa ou mesmo as metáforas sobre saúde mental, mas pelo menos vai ter alguma certeza do que está acontecendo.

No final da segunda temporada, diante da incompatibilidade entre a imagem heroica que tenta construir de si mesmo e a natureza violenta e manipuladora de seus atos, a dissonância cognitiva do protagonista David (Dan Stevens) resulta em um surto psicótico, levando-o a finalmente se tornar o vilão Legion. No início da terceira, sua ex-namorada e também mutante Syd (Rachel Keller) conta com a ajuda da Divisão 3 e do vilão Shadow King/Amahl Farouk (Navid Negahban) para tentar encontrá-lo e matá-lo.

Puro Êxtase

David segue repetindo para si próprio que é “uma boa pessoa e merece ser amado”, o que o leva a se tornar uma espécie de líder espiritual para um grupo de jovens mulheres que o adoram e o consideram uma figura paterna. Gerenciada por Lenny (Aubrey Plaza), essa seita dá a seu líder a ilusão de amor e aceitação que ele vem buscando desde o início da série. Ela alimenta seu complexo de messias e serve como alívio para o complexo de abandono que ele desenvolveu depois de descobrir que seus pais biológicos o deram para adoção.

O fato de que a seita de David é composta majoritariamente por mulheres não é nenhum acidente: estima-se que 70% dos membros de seitas ao redor do mundo são do sexo feminino. Ainda não há um consenso sobre o porque dessa tendência, mas ela também pode estar relacionada com o abandono parental e outros problemas durante a infância.

Essa realidade é visível na composição de seitas e movimentos religiosos como a Família Manson, o Templo do Povo dos Discípulos de Cristo (o número de mulheres era quase o dobro do número de homens) e nos seguidores de Osho representados na minissérie Wild Wild Country (que considerei a melhor série de 2018).

O que se sabe é que esses movimentos possuem essas e outras características em comum:

  • Seitas são atrativas porque promovem a ilusão de conforto;
  • Seitas satisfazem nossos desejos por respostas absolutas;
  • Pessoas com baixa autoestima são mais propensas a serem atraídas para esse tipo de ambiente;
  • Novos recrutas são “bombardeados com amor”;
  • Muitos participantes de seitas rejeitam religiões institucionais;
  • Seitas mantém seu poder por meio de uma mentalidade de “nós contra eles”;
  • Membros de seitas geralmente não sabem que estão em uma seita;
  • Líderes de seitas são especialistas em controle de mentes;

Esse último ponto é justamente o caso de David, que é um poderosíssimo telepata capaz de distorcer a realidade e prover “orgasmos mentais” para seus seguidores. E são por todos esses motivos que é tão fácil para ele conquistar a confiança de Switch (Lauren Tsai), uma mutante capaz de viajar no tempo e que se sente negligenciada por seu frio e distante pai. Com a ajuda dela, David coloca em movimento um plano que pode, inadvertidamente, acabar com o mundo.

Dias de Um Futuro Esquecido

A viagem no tempo não é uma novidade no universo dos X-Men. Ela já foi muito bem utilizada no sucesso X-Men: Dias de um Futuro Esquecido (crítica aqui) e faz parte da trama de Deadpool 2 (crítica aqui). Porém, como estamos falando de Legion, o conceito é explorado de forma inovadora e visualmente fantástica. Além do estiloso “corredor do tempo” no qual Switch pode navegar e do local/momento conhecido como o “tempo entre o tempo” apresentado por Amahl Farouk, também são introduzidos os Demônios do Tempo, criaturas aterrorizantes que sempre aparecem como vultos e se alimentam do tempo ao seu redor, causando o envelhecimento de quaisquer coisas ou pessoas que se aproximem.

O mecanismo também serve para introduzir na trama os verdadeiros pais de David, Charles Xavier (Harry Lloyd) e Gabrielle (Stephanie Corneliussen). Em um episódio inteiramente dedicado a eles, vemos como se conheceram e como o Shadow King contaminou David ainda no berço.

Diante da possibilidade de viajar no tempo, David vai ainda mais fundo em sua neurose. Se anteriormente seus crimes eram justificados por suas boas intenções e pelo fato de que ele foi uma vítima de Farouk durante toda sua vida, agora ele também tem (ou terá) a possibilidade de voltar no tempo e desfazer quaisquer crimes que ele cometa no presente. Sob seu ponto de vista, nada disso vai acontecer depois que ele “consertar o passado”. Portanto, está tudo liberado e os fins justificam os meios.

Ao ignorar a dor e o sofrimento que está causando no presente, David revela o lado mais narcisista de sua personalidade. Para ele, apenas sua dor importa. Apenas sua dor é real. As outras pessoas podem até ter problemas, mas os deles são sempre mais graves e urgentes. Ele se vê como uma eterna vítima e está disposto a sacrificar quem quer que seja para atingir sua felicidade, resultando em muitos momentos sombrios.

Um deles ocorre ainda na segunda temporada. Quando Syd finalmente percebe suas tendências narcisistas e o quanto ele já está desconectado da realidade, uma das primeiras reações de David é usar seus poderes para fazê-la esquecer daquelas conclusões. Com ela ainda em uma espécie de transe, ele tenta manter a narrativa da história de amor e continuar o relacionamento. Em outras palavras, não há consentimento nos beijos que eles trocam ou no sexo que fazem desse ponto em diante.

It’s Always Blue

Esse tipo de ousadia temática se combina com as ousadias visual e narrativa para fazer de Legion uma das melhores séries dos últimos anos. O canal FX e a Marvel Television deram liberdade absoluta para Noah Hawley produzir uma sombria, psicodélica e informativa viagem pela cabeça de uma pessoa que sofre de transtornos mentais enquanto tenta lidar com as pessoas e o mundo ao seu redor.

Essa abordagem foi estendida para o material de divulgação e pode ser apreciada nos trailers da primeira, da segunda e da terceira temporadas (e também no TV spot intitulado Daisy Chain), ou mesmo nos posters liberados para a terceira, como esses cinco:

Poster 1
Poster 2
Poster 3
Poster 4
Poster 5

Nessa nova era de ouro da TV, Legion expande as fronteiras em várias direções, usando cores, música e dança para representar conflitos que normalmente seriam mostrados como violentas e explosivas batalhas. Aqui, a violência cede lugar para manifestações metafóricas dos conflitos psíquicos que estão ocorrendo, resultando no equivalente televisivo de uma viagem de ácido. O conjunto formado por sua temática e sua abordagem artística fazem de Legion uma série que pode ser considerada, metaforicamente, psicotrópica.

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