Pluribus: A Parábola da Aniquilação
* Contém SPOILERS da primeira temporada de Pluribus
Naqueles dias, Carol Sturka (Rhea Seehorn) viajava divulgando o mais novo romance de sua famosa série de livros de fantasia. O que ela não imaginava é que, ao longo dos últimos meses, cientistas dos EUA haviam criado um vírus com base em uma sequência de RNA que foi recebida em um sinal de rádio vindo do espaço sideral. Em uma fatídica noite, os protocolos de biossegurança falham e o vírus alienígena entra em contato com um ser humano. Isso dá início a uma sequência de eventos que pode representar o fim da humanidade.
Mas não é que esse vírus altamente transmissível cause uma doença agressiva ou seja diretamente responsável pela morte dos infectados. Seu principal efeito é que ele permite que as mentes de seus portadores entrem em perfeita sintonia, com uma espécie de “telepatia” tão poderosa que os leva a se comportarem como um único indivíduo. Essa nova “mente coletiva” vai rapidamente tomando medidas para infectar cada vez mais pessoas, até o ponto no qual praticamente toda a humanidade está infectada e fazendo parte desse grande Coletivo.
As únicas exceções são 12 pessoas que parecem ser imunes ao patógeno. Dentre elas, está a nossa heroína Carol Sturka.
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Essa premissa básica faz de Pluribus uma das mais poderosas obras de ficção científica especulativa dos últimos tempos, já que ela apresenta um cenário e uma história que levantam questionamentos de natureza psicológica, social, filosófica, ética e até mesmo religiosa. Essa situação hipotética nos leva a refletir sobre aspectos da nossa existência e da experiência humana que podem nos passar despercebidos ao longo de nossas vidas.
Uma grande novidade aqui é que a trama não trata essa “invasão” como um conflito nos moldes conhecidos pela humanidade. Não é que alienígenas estão dominando a mente das pessoas ou que uma espécie inteligente resolveu conquistar a Terra. Como a “espécie invasora” aqui é meramente um vírus, não é possível dizer que ele tem objetivos ou planos específicos. O que esse vírus tem é um determinado efeito sobre as pessoas, e esse efeito pode levar a alguns tipos de aniquilação pouco explorados pela ficção científica.
Um aspecto marcante é que o Coletivo não enxerga os imunes como ameaças e nem tenta “dominá-los” de forma violenta. Uma das prioridades do Coletivo é garantir o bem-estar e a felicidade dos imunes, fazendo o máximo possível para aplicar todos os recursos da humanidade para atender às necessidades e aos caprichos dessas 12 pessoas. É esse aspecto que leva o espectador a se questionar: o que eu faria nessa situação? Se o restante da humanidade estivesse disposto a me dar qualquer coisa que eu desejasse, o que eu pediria? Essa situação me tornaria uma pessoa extremamente feliz ou uma pessoa extremamente solitária?
Alguns dos casos mais interessantes são os dos dois imunes que preferem, de formas diferentes, abraçar a ilusão. Laxmi (Menik Gooneratne) tenta se ater a uma ideia de normalidade, tratando seu filho como uma criança normal, apesar do garoto já não existir como um indivíduo. Por mais que tenha todas as informações necessárias, ela parece não aceitar que aquele garoto que mora com ela já não possui a personalidade de seu filho, mas sim a personalidade de uma entidade que combina as memórias, as experiências, as habilidades e o conhecimento de vários bilhões de pessoas.
O outro caso interessante é o de Diabaté (Samba Schutte), um hedonista que utiliza a boa vontade do Coletivo para viver de forma luxuosa e para realizar suas fantasias sexuais. Na prática, ele sabe que sempre está transando com o Coletivo, mas prefere acreditar nos papéis interpretados pela entidade. O Coletivo diz tudo o que ele quer escutar e faz ele se sentir poderoso e desejado. Com exceção do contato físico, nada nessas experiências é real, mas elas parecem ser mais do que o suficiente para ele. Para ele, a humanidade se tornou um brinquedo sexual que fala tudo o que ele quer escutar.
As situações de Laxmi e Diabaté nos lembram que, em nosso mundo, muitas pessoas também escolhem as ilusões e tentam fazer as pessoas ao seu redor se encaixarem em diferentes tipos de fantasias. Porém, se o que nós chamamos de realidade é o que nós podemos captar com os nossos sentidos, como podemos diferenciar a realidade da ilusão?
Por exemplo, se uma pessoa diz que nos ama e tem atitudes que condizem com isso, como podemos saber se esse amor é real ou se é apenas uma ilusão que o outro está tentando criar? As palavras e as atitudes são suficientes? Indo além, se as palavras e as atitudes estão presentes, faz diferença se o sentimento é real ou não? O que fica claro nos casos de Laxmi e Diabaté é que, dadas as circunstâncias, eles estão mais do que satisfeitos com a ficção.
As solitárias pedras do caminho
O principal aspecto da primeira temporada de Pluribus é a jornada emocional percorrida pela protagonista Carol Sturka. Ao invés de grandes acontecimentos, a trama conta muito mais com grandes revelações e grandes aprendizados, consolidando a posição da protagonista apenas nos minutos finais do episódio final. Até lá, Carol precisa lidar com uma grande perda enquanto absorve a nova realidade da raça humana. É um caminho que exige dela muita maturidade e inteligência emocional, se tratando muito mais de como ela lida com as próprias emoções do que como ela lida com o Coletivo.
Nesse sentido, Pluribus lembra a ótima série animada Carol e o Fim do Mundo, na qual uma outra Carol precisa lidar com o potencial fim da humanidade. Nos dois casos, o foco é muito mais nas jornadas pessoais e em seus efeitos psicológicos do que nos grandes eventos que ameaçam a humanidade.
A primeira complicação é o fato de que sua esposa Helen (Miriam Shor) é uma das vítimas fatais da contaminação massiva executada pelo Coletivo (com a ajuda de aviões adaptados para se tornarem pulverizadores). Assim que entram em contato com o vírus, as pessoas começam a ter convulsões e ficam desmaiadas por alguns instantes, o que é extremamente perigoso para quem está dirigindo ou realizando outras atividades sensíveis. Isso significa que uma grande parte da humanidade se machucou ou morreu durante a contaminação inicial. O número de fatalidades informada a Carol pelo Coletivo é de mais de 800 milhões de pessoas.
De repente, Carol perdeu tanto a sua companheira de vida quanto a humanidade em geral. O Coletivo pode até ser amigável e extremamente solícito, mas essa não é a raça humana que ela conhece. Independente e de temperamento explosivo, ela vai aprendendo aos trancos e barrancos que precisará sim lidar com o Coletivo e que fazer exigências de forma agressiva não trará os resultados que ela espera, além de poder custar as vidas de mais alguns milhões de pessoas.
Seu ímpeto de tentar reverter a situação da humanidade é abalado tanto pela indiferença dos outros imunes quanto pelos diferentes tipos de luto e solidão que ela precisa enfrentar. A partir de determinado ponto, tanto os imunes quanto o Coletivo passam a evitar o contato com ela, deixando-a em uma situação cada vez mais fragilizada. É esse desenvolvimento que a leva a começar a se entregar às ilusões oferecidas pelo Coletivo, especialmente a ilusão que vem no formato da bela Zosia (Karolina Wydra).
Ao sobrepormos a jornada de Carol com a jornada do paraguaio Manousos (Carlos-Manuel Vesga) podemos perceber duas abordagens diferentes nesses dois rebeldes. Enquanto Carol tenta se adaptar à realidade da situação e utiliza os recursos ao seu dispor, Manousos faz o máximo possível para evitar qualquer contato com o Coletivo e tenta manter os códigos sociais do mundo como ele era antes. Porém, a adaptabilidade e a fragilidade de Carol permite que ela seja “seduzida” pelo Coletivo, enquanto o isolacionismo de Manousos lhe permite aprender muito pouco sobre o “inimigo” e quase lhe custa a vida em vários momentos.
Ao fim, os dois personagens corrigem seus extremos e encontram um meio termo que pode garantir o futuro da humanidade. Eles terminam a temporada muito mais maduros e equilibrados do que eram quando a história começou.
Paz na Terra para o homens de boa vontade
O mundo criado pelo Coletivo não parece ser tão ruim assim. Não há mais conflitos e sofrimento, nem desigualdade social ou outros tipos de injustiças. Há um equilíbrio generalizado que parece resultar em uma genuína felicidade e no sonho humano de paz na Terra. Não há medo e ansiedade, e a humanidade parece estar em pleno controle da situação.
Porém, esse equilíbrio pacífico e passivo também irá levar a uma inevitável extinção. Como o Coletivo não está disposto a matar plantas e animais para garantir a subsistência das pessoas, isso significa que a humanidade acabou de ganhar uma data de validade. Indo além, a falta de individualidade e de diversidade de pensamento também significa que, do ponto de vista evolutivo, a lógica do Coletivo se torna um ponto único de falha.
Além disso, a aniquilação da individualidade também significa a aniquilação da cultura e da criatividade. A forma pragmática e otimizada com a qual o Coletivo lida com os recursos em geral também significa o abandono de rituais e costumes que a humanidade desenvolveu ao longo de milhares de anos. A rigor, é como se a raça humana tivesse sido substituída por um único indivíduo, que mora praticamente sozinho no planeta Terra e está condenado à extinção.
Para o Coletivo, tudo isso é justificável em nome da paz e do equilíbrio. Ele descreve a existência como parte de uma mente coletiva como cheia de felicidade e tranquilidade, afirmando que Carol irá entender quando ela também fizer parte. E é aí que a situação fica claramente “complicada”.
O Coletivo afirma que está fazendo tudo o que pode por Carol e pelos outros imunes porque os ama incondicionalmente. Qualquer coisa que o Coletivo puder fazer para tornar as vidas deles mais feliz e prazerosa será feito. Um dos sinais máximos desse “amor” seria o fato de que o Coletivo está trabalhando dia e noite para contornar a imunidade daquelas 12 pessoas e levá-las a fazer parte da mente coletiva.
Porém, se o Coletivo ama esses indivíduos tanto assim, por que ele está tentando acabar com a individualidade deles? Por exemplo, se eles amam Carol e acreditam que ela é muito especial, por que fazer esforços para que Carol, essencialmente, deixe de existir como indivíduo? Ao converter Carol, o Coletivo está defendendo os interesses de Carol ou está defendendo os interesses do próprio Coletivo?
Esse amor performático e essa necessidade de converter a todos revela uma das grande metáforas presentes em Pluribus. Assim como vários grupos religiosos afirmam que parte de sua doutrina é converter a maior quantidade possível de pessoas, o Coletivo afirma que seu “imperativo biológico” é o de converter todos os seres humanos para a mente coletiva. Ou seja, nem o Coletivo e nem os grupos religiosos tratam isso como uma escolha, mas sim como uma obrigação que eles precisam cumprir.
Nos dois casos, o grupo afirma amar e respeitar os seus futuros membros, exigindo “apenas” que eles abram mão da própria individualidade e façam parte de um coletivo homogêneo e obediente. Isso não é realmente uma forma de amor, mas sim uma forma de dominação. O Coletivo de Pluribus pode não ter todas as características de uma seita abusiva, mas aplica várias das técnicas de “sedução” que esse tipo de grupo geralmente utiliza.
Assim como acontece nos casos reais, Carol passa a aceitar as ilusões e o bombardeio de amor oferecidos pelo Coletivo justamente quando se encontra fragilizada pelo luto e pelo isolamento. O afastamento temporário do Coletivo pode ser visto como uma forma de punição, visando facilitar a subjugação da individualidade de Carol. Por mais que se mostre benevolente e empático, as ações do Coletivo revelam uma força opressiva e colonizadora. Todos os desejos dos indivíduos são respeitados e/ou atendidos, exceto o desejo de permanecerem indivíduos.
O que Carol demora a entender é que tudo o que o Coletivo faz é em nome de seu “imperativo biológico” de converter a maior quantidade possível de pessoas. Todo aquele amor e empatia demonstrados, especialmente quando vêm de Zosia, são apenas ferramentas para manter Carol e os outros imunes calmos e satisfeitos até o inevitável momento da conversão.
A Cruz e a Espada
A cena de abertura do episódio final dessa primeira temporada exemplifica a força colonizadora do Coletivo e a compara às forças colonizadoras que apagaram muitas culturas do passado. Nela, o coletivo mantém a rotina e os costumes na aldeia da indígena imune Kusimayu (Darinka Arones), com pessoas produzindo artigos artesanais e cantando músicas típicas de sua cultura. Kusimayu, que aceitou ser convertida para o Coletivo, aguarda ansiosamente a chegada de uma versão do vírus feita sob medida para ela, com a utilização de suas células tronco.
O Coletivo faz o máximo possível para deixá-la calma e confortável durante seu primeiro contato com o vírus, transformando o processo em uma espécie de ritual que se assemelha aos típicos rituais indígenas. Porém, uma vez que a conversão é completada, a aldeia e seus animais domesticados são completamente abandonados, deixando para trás uma herança cultural que irá se perder no tempo e que não tem a menor importância para o Coletivo.
Durante a colonização das Américas, havia duas forças colonizadoras em conflito. De um lado, os colonizadores enviados pelos governos europeus buscavam escravizar as populações indígenas para utilizá-las como força de trabalho durante a exploração do continente “descoberto”. Do outro lado, os jesuítas da Companhia de Jesus buscavam realizar sua missão cristã de espalhar o evangelho pelos quatro cantos do mundo e “salvar as almas” dos pagãos.
Na prática, os jesuítas também exploravam a mão de obra indígena. A grande diferença é que eles os tratavam como cristãos convertidos, e não como animais de carga.
De uma forma ou de outra, os indígenas eram levados a reconhecer a cultura europeia como “superior” e a abandonar os costumes nativos que não fossem compatíveis com ela. Para os jesuítas, aquela conversão era como um ato de amor, já que visava “salvar” os indígenas e abrir para ele as portas do Reino dos Céus. Na prática, muitas culturas indígenas foram aniquiladas ao longo desse processo, com seus indivíduos passando a fazer parte da massa cristã que ainda estava em grande parte sob o domínio do Vaticano.
Tanto o Coletivo de Pluribus quanto os movimentos religiosos e políticos que visam converter os “descrentes” lembram um dos vilões mais marcantes da franquia Star Trek: o Borg. Esse é um coletivo de ciborgues introduzido na série Jornada nas Estrelas: A Nova Geração e que é o principal vilão do filme Jornada nas Estrelas: Primeiro Contato. O vilão se tornou tão popular que chegou a deixar sua marca na cultura pop por meio da afirmação: “Nós somos o Borg. Você será assimilado. Resistir é inútil.”
Em determinado ponto de Primeiro Contato, a afirmação é feita da seguinte forma:
Nós somos o Borg. Desativem seus escudos e entreguem as suas naves. Nós iremos adicionar as suas distinções biológicas e tecnológicas às nossas. A sua cultura vai se adaptar para nos servir. Resistir é inútil.
O que todas essas histórias têm em comum é a ideia de que só é possível para a humanidade atingir um certo nível de equilíbrio se todas as pessoas pensarem exatamente da mesma forma. Enquanto alguns grupos defendem um individualismo radical e egoísta, outros defendem um nível de homogeneidade que não permite a diversidade e a dissidência. É inegável que a sobrevivência da humanidade depende de um alto grau de cooperação. Porém, se essa cooperação vem ao custo da individualidade das pessoas, que tipo de humanidade estaria sobrevivendo? Quanto tempo ela realmente iria durar?
Com apenas nove episódios, a primeira temporada de Pluribus consegue explorar esse cenário especulativo em diversas camadas, indo das mais íntimas questões psicológicas dos personagens até as implicações dessa situação sobre o percurso da humanidade. Mesmo se Carol e Manousos realmente conseguirem reverter o surgimento do Coletivo, que tipo de humanidade teremos de volta? Diante de tudo o que já foi perdido, o quão profundamente traumatizada essa humanidade estará?












