Crítica: Trama Fantasma

Phantom Thread, EUA, 2017



Filme mergulha em um retrô mundo da alta costura e na intimidade de um casal

★★★★★


Há algo inquietante já na primeira interação entre o grande nome da alta costura Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis) e a então garçonete Alma (Vicky Krieps). Ela aceita com naturalidade o longo e exagerado pedido do charmoso homem sentado perto da janela. Esse é apenas o início da “fome” demonstrada por Reynolds, e que Alma fica feliz em saciar até o momento em que ela também precisa “consumir” algo.

Trama Fantasma é um filme romântico se pudermos dizer que todo filme romântico é sobre a luta contra a solidão e as formas que encontramos para escapar dela. Se a morte é o primeiro e o último inimigo, então a solidão é o segundo e penúltimo. Quando Alma encontra Reynolds, ele é um solteiro convicto. Mas ele abraça a solidão não porque realmente goste dela, mas porque a prefere à alternativa: ter relações “românticas” que não passam essencialmente de relações sociais, com direitos, deveres e um código de conduta a ser seguido.

trama fantasmaPara um casamento funcionar, nenhuma das partes pode ser completamente espontânea ou agir de acordo com seus instintos mais básicos, concessões que o melindroso Reynolds não está disposto a fazer. Em Alma, ele encontra uma musa que o inspira não apenas pela beleza mas também pela forma com a qual ela, inicialmente, se entrega facilmente a seus melindres. Ele a consome enquanto é consumido pela própria arte.

E Alma se entrega facilmente à fantasia do homem perfeito, que chega do nada, lhe tira de sua vida limitada de garçonete e lhe dá tudo o que ela sempre quis. E ela o ama por isso. E o admira. E o quer só para ela. E precisa “consumi-lo”. O que Reynolds demora para perceber é que Alma tem uma fome tão grande quanto a dele, e que ela pode consumi-lo tal qual sua arte já o faz. E para isso, ela precisa que ele tire a armadura emocional que está sempre usando; é por isso que ela precisa dele “caído de costas, indefeso, tenro, aberto.”

Para eles, tudo se resume a amor maternal. Com Alma, Reynolds pode ser o garotinho que ele jamais deixou de ser e que quer apenas a própria mãe. Em contrapartida, Alma pode derramar nele todo o amor maternal que ela tem, o que a faz se sentir não apenas indispensável mas também como o centro do mundo daquele “garoto faminto”. Por mais que esse seja um relacionamento de alguma forma abusivo (com sinais típicos da Síndrome de Münchhausen por procuração), é nele que esse casal encontra equilíbrio, e não na estabilidade e nas garantias de um relacionamento tradicional.

Essa luta contra a solidão também é uma luta por reconhecimento. Não do tipo superficial, como prêmios e elogios, mas do tipo mais íntimo: saber que há alguém que conhece o verdadeiro você; que consegue te enxergar por trás das aparências e, mais do que tudo, te entende do início ao fim. Usando um conceito introduzido na primeira temporada da série True Detective, pode-se dizer que estamos sempre tentando convidar alguém para entrar em nossa metafórica “sala trancada”.

Essas ideias sobre identidade também são exploradas no filme Persona, que possui diversos paralelos com Trama Fantasma. O primeiro e mais superficial é o nome de uma das protagonistas, Alma. O segundo é o relacionamento entre elas: Alma (Bibi Andersson) é uma enfermeira que tenta entender o que há por trás da repentina mudez e isolamento da atriz Elisabet Vogler (Liv Ullmann), situação que podemos comparar com os esforços da Alma de Trama Fantasma em desvendar o que há por trás do distanciamento emocional de Reynolds. Nos dois casos, as personagens se perdem uma na outra e algo novo surge na forma de um peculiar relacionamento.

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A expressão por meio da arte também evidencia essa primordial necessidade de ser conhecido e compreendido. Nesse sentido, o meticuloso e requintado trabalho do diretor Paul Thomas Anderson em Trama Fantasma reflete a dedicação e o perfeccionismo do próprio Reynolds Woodcock (que o diretor e Day-Lewis basearam no estilista espanhol Cristóbal Balenciaga). Ou vice-versa. Enquanto cada enquadramento dessa obra transpira beleza das mais diversas formas (figurino, olhares, paisagens, arquitetura, etc.), a minimalista e pervasiva trilha sonora de Jonny Greenwood, que é membro do Radiohead e colaborador de longa data do diretor, completa a atmosfera nostálgica e barroca da narrativa.

Antes do relacionamento entre Reynolds e Alma tomar rumos mais sombrios e atingir um certo equilíbrio, presenciamos uma sútil batalha na Casa Woodcock. A chegada de Alma desestabiliza a estrutura de poder entre Reynolds e sua irmã Cyril (Lesley Manville), e os três personagens se revezam na posição de dominância sobre os demais. A atuação de Manville completa o trio de fantásticas atuações que conduzem Trama Fantasma, no qual mesmo o renomado Day-Lewis não consegue ofuscar ela e Krieps.

Tudo isso torna Trama Fantasma uma obra completa, que consegue atingir cada um dos objetivos que pretendia alcançar. O diretor Paul Thomas Anderson consegue mais uma vez realizar um envolvente e hipnotizante estudo de personagem enquanto explora alguns dos cantos mais sombrios da alma humana. E ele faz isso imerso em uma atmosfera de beleza e esplendor que poucos diretores poderiam colocar na tela. Apenas o tempo dirá com certeza, mas o que temos aqui é, provavelmente, um novo clássico.