O Legado de Pecados e Traições de John Le Carré


*Esse texto contém SPOILERS de várias obras de John Le Carré.

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Um Legado de Espiões, mais recente trabalho do renomado escritor John Le Carré (pseudônimo de um David Cornwell), não mostra o tempo e a justiça finalmente alcançando os crimes e abusos cometidos por seus personagens, mas sim os bastidores de uma das várias obras-primas do autor. Em O Espião Que Saiu do Frio, lançado em 1963, a Operação Windfall custa a vida do espião Alec Leamas e de sua namorada Elizabeth Gold. Agora, os filhos desses dois peões sacrificados em nome do “bem maior” procuram reparação, e fica a cargo de um aposentado Peter Guillam desenterrar a verdade, enquanto planeja apenas enterrá-la ainda mais fundo.

Nas obras de Le Carré, Guillam era o fiel escudeiro do lendário mestre-espião George Smiley, protagonista da Trilogia Karla (formada por O Espião Que Sabia Demais, Sempre Um Colegial e A Vingança de Smiley) e coadjuvante em várias outras histórias. Um Legado de Espiões foi anunciado como uma nova aventura de Smiley, mas a ação aqui protagonizada por ele ocorre principalmente em flashbacks, sempre do ponto de vista de Guillam ou de (nem sempre confiáveis) relatórios de missões ou interrogatórios. O narrador Guillam nos conduz por esses documentos, revelando o que é real, o que é ficção e o que são detalhes sem importância adicionados apenas para deixar a água mais turva.

No centro dessa trama está a trágica história da mulher que daria início a Windfall. Na Alemanha Oriental, a fonte de codinome Tulipa se encontrava em um ciclo de abuso e sofrimento ao qual Le Carré muitas vezes relega suas personagens femininas. Enquanto alguns defendem que isso seja um reflexo dos tempos e lugares nos quais essas personagens se encontram, o mais provável é que isso seja uma manifestação de alguma misoginia internalizada pelo autor depois de sua traumática infância e juventude (mais sobre isso na próxima seção).

Tulipa acaba caindo como muitas fontes perdidas pelo serviço na época: traída por um agente duplo que trabalha nos altos escalões do MI6, e que só seria desmascarado na outra grande obra-prima do autor, O Espião Que Sabia Demais. A sombra desse traidor paira sobre muitas das histórias contadas por Le Carré, e ele foi inspirado no caso real do círculo de espiões soviéticos descoberto nas entranhas do Serviço Secreto Britânico nos anos 1950.

Ao fim, a maior revelação feita por Um Legado de Espiões é a de que Le Carré ainda é Le Carré. Mesmo que a narrativa por meio dos relatórios desenterrados por Guillam possa se tornar cansativa para alguns, ela ainda reflete o estilo paciente e meticuloso pelo qual o autor vai revelando cada detalhe da trama, deixando para o leitor o trabalho de montar o quebra-cabeça completo, que inclui as muitas conexões com suas outras obras.

A narrativa também nos leva por uma nostálgica viagem pelo conjunto da obra desse autor que, com mais de 20 livros publicados, é considerado o responsável por tornar o romance de espionagem um gênero literário à parte. Rever personagens como Guillam e Smiley já seria bom o suficiente, mas somos presenteados também com menções e aparições de personagens como Control, Connie Sachs e Jim Priedeux, além de conhecermos mais detalhes sobre as vidas de Leamas e Gold antes de Windfall.

E, como não poderia deixar de ser, Um Legado de Espiões também questiona a moralidade dos métodos usados pelo Serviço Secreto para combater o inimigo soviético. Mais que isso, ele analisa os motivos pelos quais eles se enveredaram naquela quieta, sangrenta e amoral Guerra Fria. Com olhos do século XXI e levando em conta o atual processo de saída da Reino Unido da União Europeia, Smiley se pergunta pelo o que eles lutaram afinal: pela paz mundial? Pelo capitalismo? Pelo cristianismo? Pela Inglaterra? E, ao fim, é categórico:

Eu sou um europeu, Peter. Se eu tive uma missão – se eu tive alguma missão além dos enfrentamentos com o inimigo, era com a Europa. Se fui impiedoso, fui impiedoso pela Europa. Se tive um ideal inatingível, era o de liderar a Europa pra fora da escuridão em direção a uma nova era da razão. E ainda o tenho.

A Sombra de Ronnie

Na maioria das vezes que se fala sobre Le Carré, ele é apresentado como o ex-espião que se tornou escritor, mas a história de David Cornwell é bem mais rica (e trágica) que isso. Tudo começa e termina com seu pai, Ronnie Cornwell, um sociopata vigarista que manipulava, enganava e roubava qualquer um que estivesse ao seu alcance e tivesse algo que lhe interessasse. Graças a sua infância ao lado de Ronnie, quando este estava presente, Cornwell desenvolveria um conjunto de habilidades que lhe seria útil tanto como espião quanto como escritor.

Seus problemas começam quando sua mãe, cansada dos abusos físicos e psicológicos que sofria nas mãos de Ronnie, abandona a família, deixando David e seu irmão mais velho sozinhos com o pai. Anos depois, o autor a encontraria com uma nova vida, e quando perguntada sobre porque partiu deixando os filhos com um homem como Ronnie, sua resposta foi simples: ele teria me perseguido até o inferno se eu tivesse levado seus preciosos garotos. De seu próprio jeito, Ronnie gostava dos filhos, o que não evitou que eles também fossem alvo de sua violência e que David passasse boa parte de sua infância carente de afeto.

Nas ocasiões em que Ronnie não estava preso e os garotos estavam de férias do internato no qual estudavam, os dois acabavam participando dos esquemas do pai. Em determinada ocasião, eles foram deixados com um credor como garantia de que o pai voltaria rapidamente com o dinheiro para quitar sua dívida. Muitas horas depois, durante as quais os garotos reafirmaram a honestidade e idoneidade do pai, o credor desiste e apenas os manda pra casa.

Mas David começou a desenvolver sua duplicidade e imaginação quando tinha que convencer Ronnie de que tudo estava bem, escondendo problemas para evitar que o pai entrasse “em ação” e dando a entender que não estava ciente da ilegalidade de seus “empreendimentos”. Nascia ali o espião e o contador de histórias.

No MI6, o trabalho de Cornwell era se infiltrar em grupos simpatizantes do Comunismo na Universidade de Cambridge, atividade da qual ele se arrepende de apenas um aspecto:

Eu me arrependo, nos meus dias de estudante, de fingir ser um cripto-comunista e tentar atrair recrutadores soviéticos. Eu meio que tive metade de um sucesso. Eu fui pego e “cortejado” por um recrutador russo na Embaixada Soviética em Londres, e não deu em nada. Talvez eu não fosse inteligente o suficiente, ou talvez eu fui prejudicado por alguém [referência aos Cinco de Cambridge]. Mas no processo de fingir ser aquela pessoa, eu tinha que me mostrar como um tipo de comunista secreto, e aquilo significava enganar meus colegas e companheiros estudantes. (…) Cara a cara – as mentiras direto na face das pessoas, fazer amizade, fazer falsas amizades e esse tipo de coisas são – elas são de certa forma degradantes. Elas diminuem o senso de identidade de uma pessoa.

Uma vez que seu trabalho em campo não havia dado os resultados esperados, Cornwell foi colocado em um posto burocrático, durante o qual escreveu seus primeiros livros e alcançou sucesso mundial. Nascia ali John Le Carré, pseudônimo cuja origem o autor diz não se lembrar. A fama o afastou do Serviço, mas o aproximou de velhos hábitos e velhos conhecidos. Sua ocasional infidelidade no casamento culminaria com o caso extraconjugal que ele teve com a esposa de seu melhor amigo, por quem se apaixonou e com quem planejava fugir.

Mas o sucesso também atraiu a atenção de seu pai. Le Carré era agora mais um familiar que poderia ser explorado pelo insaciável Ronnie, que usava principalmente de chantagem emocional para convencer o filho a lhe enviar dinheiro ou lhe tirar de alguma prisão em alguma parte do mundo. Le Carré utilizou parte de seus recursos para rastrear e entender melhor o passado do pai (foi apenas aos 18 anos que ele descobriu que algumas das desaparições do pai durante sua infância foram causadas pelo cumprimento de penas criminais). Ele continuou pesquisando e contratando investigadores particulares mesmo depois da morte de Ronnie, mas ainda assim muitos aspectos da vida de seu pai continuam um mistério.

Um Perfeito Escritor

Até recentemente, o livro mais auto-biográfico do autor (que também possui elementos da vida do traidor Kim Philby) era Um Espião Perfeito, lançado em 1986. Nele, conhecemos o mistério da vida e das traições de Magnus Pym, um marido, um amigo e um espião exemplar, que desaparece após receber a notícia do falecimento do seu pai. A primeira coisa que ele diz a sua esposa após receber a notícia é: “Eu estou livre”. Essa obra é menos um thriller de espionagem (no qual acompanhamos sua esposa, Mary Pym, e um colega de Serviço, Jack Brotherhood, tentando desesperadamente localizá-lo) e mais um autêntico livro de memórias, com a infância e juventude de Magnus refletindo quase todos os aspectos da infância de Le Carré. Os eventos são alterados, mas os efeitos nem tanto.

Uma vez que já não podia contar com sua mãe, a maior figura materna que Magnus tem durante a infância é a de Lippsie, uma das muitas mulheres que ajudavam e eram exploradas pelo seu pai, Rick Pym. Das muitas “mães” que ele teve, ela é a que deixa a maior impressão.

Os efeitos da morte de Lipssie sobre o jovem Pym foram muitos e nem todos negativos. Seu falecimento o entrincheirou como uma pessoa autônoma, confirmando seu conhecimento de que as mulheres são volúveis e susceptíveis a desaparecimentos repentinos. Ele aprendeu a grande lição dada pelo exemplo de Rick: a importância de uma aparência respeitável. Ele aprendeu que a única segurança estava em parecer legítimo.

Depois que Mary e Brotherhood finalmente montam o quebra-cabeça da vida dupla de Magnus, eles concluem corretamente que o exemplar espião está finalmente sofrendo o colapso mental que sua longa vida dupla, mais cedo ou mais tarde, deveria causar. A traição o consome e o define. Uma das citações mais populares de Um Espião Perfeito é: “O amor é qualquer coisa que você ainda pode trair. A traição só pode ocorrer se você ainda ama.” E Mary começa a perceber que ela sempre conheceu esse lado do marido:

“Traição”, ela disse. “‘Nós traímos para sermos leais. A traição é como a imaginação quando a realidade não é boa o suficiente.’ Ele escreveu isso. Traição como esperança e compensação. Como a criação de uma terra melhor. Traição como amor. Como uma homenagem às vidas que nós não vivemos. E continua, todos esses tediosos aforismos sobre traição. Traição como escapada. Como um ato construtivo. Como uma afirmação de ideais. Adoração. Como uma aventura da alma. Traição como viagem: como podemos conhecer novos lugares se nunca sairmos de casa?”

Magnus acaba inevitavelmente cometendo suicídio, e esse é um tema recorrente na obra de Le Carré. Muitos dos seus trabalhos tem finais pessimistas, mas, por ser um livro pseudo-biográfico, o final de Um Espião Perfeito acaba sendo um dos mais melancólicos do autor. Outros nos quais um dos protagonistas tem finais semelhantes são O Jardineiro Fiel, Sempre Um Colegial e O Espião Que Saiu do Frio, no qual Alec Leamas desiste da própria vida nos momentos finais. Em Um Legado de Espiões, não é por acidente que Leamas seja um dos interlocutores da seguinte reflexão:

O suicídio é uma decisão que certas pessoas tomaram cedo na vida. Elas talvez não saibam disso, mas está dentro delas, Alec. Então um dia, algo acontece que o traz à tona. Pode ser algo completamente trivial, como esquecer sua carteira no ônibus. Pode ser drástico, como seu melhor amigo morrer. Mas a intenção estava sempre lá. E o resultado é o mesmo.

Em 2015, foi lançada a primeira biografia oficial de Le Carré, fruto de 4 anos de pesquisa e 50 horas de entrevistas executadas pelo seu biógrafo, Adam Sisman. Entretanto, Le Carré não parece ter ficado satisfeito com o trabalho e anunciou que estaria publicando sua própria biografia dentro de um ano, o que pegou todos, inclusive Sisman, de surpresa. E o biógrafo já deu a entender que pretende lançar, caso Le Carré morra antes dele, um versão mais completa e não autorizada de John Lé Carré: The Biography.

O título da autobiografia de 2016, The Pidgeon Tunnel: Stories from My Life (O Túnel dos Pombos: Histórias da Minha Vida, em tradução livre), é explicado no curto prefácio como sendo uma referência a um clube de Monte Carlo que usava pombos de verdade para a prática de tiro esportivo. Os animais, capturados em armadilhas no teto do cassino ao lado, que era onde o autor estava acompanhando um dos vícios do pai, eram inseridos em um túnel escuro voltado para o mar, e quando finalmente emergiam, os atiradores do momento testavam a mira e a sorte.

Os pombos que não eram atingidos ou eram apenas feridos faziam o que os pombos fazem. Eles retornavam para seu lugar de nascimento no teto do cassino, onde as mesmas armadilhas os esperavam.

O exato porquê dessa imagem estar me assombrando por tanto tempo é algo que talvez o leitor esteja melhor preparado para julgar.

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