Coronavírus: Pandemia em Produção


Em Tecnologia da Informação (TI), diz-se que um sistema está em produção quando ele está rodando “pra valer”, com dados dos clientes reais da organização responsável por ele. E quando o sistema em questão é de missão crítica, isso significa que, se ele apresentar lentidão ou indisponibilidade, os clientes ou a organização sofrerão um ou mais tipos de prejuízos, sejam eles financeiros, sociais ou de credibilidade.

É por isso que os sistemas em produção são geralmente cercados por uma série de mecanismos e protocolos para lidar com eventualidades. Redundância de recursos, monitoramento e plantonistas 24h por dia, realização de backups e guias/scripts para recuperá-los são algumas das técnicas aplicadas para garantir uma alta disponibilidade.

E muita coisa poder dar errado. Unidades de armazenamento podem apresentar defeitos, servidores podem “cair”, o tempo de resposta do banco de dados pode aumentar significativamente, operadores podem desligar recursos por acidente, etc. O importante é a organização não apenas tentar evitar essas eventualidades, mas também estar sempre preparada para elas. Essa é uma área com pouco espaço para o otimismo, já que ela está no campo de atuação da famosa Lei de Murphy, que diz que se existe a possibilidade de alguma coisa dar errado, isso com certeza vai acontecer em algum momento (geralmente, no pior possível).

Porém, ocasionalmente, alguma falha completamente inesperada ocorre em um sistema em produção. Um novo equipamento de rede começa a apresentar problemas dias depois de sua instalação; um bug crítico é identificado na madrugada de um final de semana; um script de monitoramento começa a “derrubar” os servidores que ele deveria monitorar; um operador apaga a tabela errada em todas as instâncias do banco de dados. Nesses casos, não há um “Plano B”. Cenários como esses não possuem respostas preestabelecidas, exigindo assim que os operadores usem suas experiência e criatividade para mitigar os danos até o momento no qual uma solução foi desenvolvida.

Traçando um paralelo com a epidemiologia, a pandemia de COVID-19 pode ser considerada uma emergência desse tipo. Quando o coronavírus SARS-CoV-2 começou a fazer vítimas no final de 2019, pouco se sabia sobre ele ou sobre seu efeito brutal sobre os sistemas de saúde. Como ele funciona? Como é transmitido? Qual seu número básico de reprodução? Como deve ser tratado? Qual sua taxa de mortalidade? Quem se recuperou desenvolveu imunidade? Em caso positivo, quanto tempo essa imunidade dura? Como várias dessas perguntas ainda seguem sem respostas consolidadas, tudo o que podemos fazer é utilizar nossa experiência e criatividade para conter o avanço da doença até que uma vacina seja desenvolvida.

Enquanto na área de TI essa mitigação depende de uma equipe de técnicos, no caso da pandemia a mitigação depende de quase toda a população mundial, o que complica significativamente os esforços. Para a maioria das pessoas, é difícil aceitar que existe uma doença tão desconhecida para a ciência. Estamos todos acostumados com diagnósticos relativamente rápidos e tratamentos claros para a maioria das doenças que afetam grandes números de pessoas. A dengue e a febre amarela são velhas conhecidas e ainda causam epidemias pontuais no Brasil, mas sabemos como tratá-las e como evitar sua transmissão pelo Aedes Aegypti.

Mas o “vetor” do SARS-CoV-2 não é um mosquito. A doença é transmissível entre seres humanos pelo ar e por gotículas respiratórias, e deixa o infectado saudável por tempo o suficiente para que haja transmissão para outras pessoas. Parece contraintuitivo, mas se esse novo coronavírus fosse muito mais agressivo, ele dificilmente provocaria uma pandemia, já que as pessoas contaminadas rapidamente se isolariam em casa, buscariam tratamento em hospitais ou morreriam. Com a COVID-19, a pessoa pode passar dias infectando outras na família e em locais públicos antes de entrar em estado crítico.

E quando uma doença como essa é combinada com teorias da conspiração, polarização ideológica e líderes despreparados, a situação fica ainda pior, resultando em comportamentos que também podem ocorrer em emergências computacionais. Sem saber como lidar com algo dessa magnitude, aparecem pessoas que acham que a emergência não é uma emergência ou que não é tão grave assim; que preferem identificar culpados ao invés de lidar com o problema, tentando ao máximo se livrar da responsabilidade; que acham que há problemas mais graves para serem resolvidos; que preferem esconder o problema e esperam que ele se resolva sozinho; que querem lidar com a situação como se fosse um dos problemas já previstos, quando claramente não é.

Uma pandemia como a de COVID-19 já era até esperada, mas não havíamos preparado uma resposta protocolar. O SARS-CoV e o MERS-CoV, que provocaram surtos em 2002 e em 2012, também são coronavírus, mas nenhuma vacina foi desenvolvida para eles. Se isso tivesse acontecido, seria muito mais rápido (e barato) adaptar as vacinas existentes para o SARS-CoV-2 do que ter que desenvolver uma vacina completamente nova praticamente do zero, como várias organizações estão tentando fazer agora. Um exemplo disso é a vacina contra a gripe comum, que é atualizada a cada dois anos com novas versões do patógeno.

É por isso que o financiamento constante de pesquisas científicas é necessário. O acúmulo de conhecimento sobre a dengue e outras doenças ocorreu ao longo de décadas de investimento e aplicação do método científico, com milhares de pesquisadores dedicando milhares de horas de suas vidas ao trabalho, e não em um passe de mágica. O mesmo vale para o desenvolvimento de vacinas seguras, que, em condições normais, é relativamente caro e lento.

Diante de uma pandemia como a de COVID-19, que já matou 100 mil pessoas apenas nos EUA, é normal que as pessoas recorram ao pensamento mágico e escolham acreditar em saídas fáceis ou em curas milagrosas para lidar com uma ameaça que mesmo os mais velhos jamais presenciaram em suas vidas adultas. Pandemias são eventos raros, mas quando ocorrem têm a capacidade de alterar os rumos da humanidade. Portanto, assim como na TI, é melhor estarmos pessimistas e preparados do que otimistas e à mercê da cruel Lei de Murphy.

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