Palestina 36 e os Conflitos Antes de Israel


É possível argumentar que o filme Palestina 36 conta apenas um lado da história e que ele é abertamente uma peça de propaganda “pró-Palestina”. Porém, também é inegável que a trama cobre um período e um lugar da História que recebe pouca atenção da mídia e do público em geral. Mais que isso, o filme conta uma história que, por mais que esteja restrita a um determinado ponto do tempo, serve como um reflexo do passado e do presente do Conflito Israel-Palestina.

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A trama serve como um convite para irmos ainda mais fundo nas raízes desse conflito e entendermos o que o torna tão, aparentemente, insuperável. Aquela Palestina de 1936 é apenas um dos reflexos da Palestina de quase 3000 anos atrás e possui muitas semelhanças com a Palestina de 2025. Porém, apesar desses reflexos e dessas semelhanças, a história não é tão simples quanto se pode imaginar.

Uma História de Antissemitismo

Muitas pessoas ainda acreditam na ideia de que o Conflito Israel-Palestina é reflexo de disputas milenares entre árabes e judeus, como se ele fosse apenas uma continuação de guerras antigas. Porém, as verdadeiras raízes do conflito são muito mais recentes, como ficará claro nas próximas seções.

O que realmente é antigo é o antissemitismo que fez do povo judeu um dos mais perseguidos e injustiçados ao longo da História da humanidade.

Inicialmente, em 722 a.C., a conquista do Reino de Israel pelos assírios levou à deportação de muitos israelitas da Palestina para a Mesopotâmia (atual Iraque e Kuwait). Porém, a diáspora judaica tem seu início oficial com a expulsão dos judeus do Reino de Judá a partir de 609 a.C, período que ficou conhecido como o Cativeiro Babilônico.

Séculos depois, um outro exílio traumático marcaria a população judaica. A destruição de Jerusalém e do Templo de Herodes pelos romanos no ano de 70 d.C. ficou conhecida como a Queda do Segundo Templo e selou o espalhamento do povo judeu por diversas partes do mundo. Os que não escaparam foram presos, exterminados ou escravizados sistematicamente pelo Império Romano. Nos anos seguintes, milhares dos aprisionados foram humilhados e executados publicamente como parte de grandes eventos que comemoravam as glórias de Roma.

Os judeus foram permitidos de volta em Jerusalém em 361, mas seriam mais uma vez vítimas de extermínio ou expulsos da região em 629, depois de se revoltarem contra o Império Bizantino. Na mesma época, o Islamismo foi criado e começou a se expandir. Durante alguns séculos, muçulmanos, judeus e cristãos conviveram de forma relativamente pacífica em Jerusalém e em outros lugares de maioria muçulmana.

linha do tempo da palestina desde a antiguidade

Isso começaria a mudar durante as Cruzadas. Judeus e muçulmanos defenderam juntos a cidade de Jerusalém contra os ataques dos cristãos europeus, mas foram derrotados em 1099 no Cerco de Jerusalém, que seria seguido de massacres sangrentos e aterrorizantes. Os judeus só seriam permitidos de volta na cidade em 1190, quando o líder islâmico Saladino a tomou de volta dos cristãos (evento dramatizado no filme Cruzada).

Antes mesmo da queda de Jerusalém para os Cruzados, uma onda de violência contra judeus já havia começado na Europa durante a Cruzada Popular, que não havia sido oficialmente sancionada pela Igreja Católica. Apesar do antissemitismo já existir na Europa, foi esse movimento que deu início à prática de violência organizada contra judeus, o que resultaria no estabelecimento de uma cultura de perseguição que perdura até os dias de hoje.

Durante os períodos das Cruzadas e da Inquisição Espanhola, os judeus seriam massacrados, forçados a se converter ou expulsos de muitos países europeus, sempre servindo como bode expiatórios para os mais diversos problemas sociais e tendo seus bens confiscados. Ainda hoje, existem pessoas que tentam justificar o antissemitismo dizendo que se os judeus foram perseguidos por tanto tempo e por tantos povos, eles devem fazer alguma coisa para merecer toda essa perseguição.

Acontece que, desde as primeiras expulsões e confiscos de bens, a população judaica se viu incentivada a se dedicar a atividades econômicas na área de serviços (médicos, advogados, banqueiros, etc.). Isso lhes dava mais mobilidade em casos de perseguição, já que eles não teriam que deixar gado e propriedades rurais para trás e teriam mais facilidade para recomeçar suas vidas em outros lugares. Dentre esses serviços estavam os serviços financeiros, como seguros e empréstimos.

Dessa forma, ao expulsar judeus e confiscar seus bens, as populações e as autoridades europeias também estavam interessadas em vantagens econômicas. Como a maioria dos banqueiros eram judeus (a Igreja Católica proibia a prática da usura entre cristãos), expulsá-los significava que parte das dívidas da população simplesmente desapareceria, enquanto as autoridades podiam confiscar o que eles deixassem para trás. Obviamente, toda a população judaica, independente da profissão, acabava sendo vítima do estereótipo do “judeu avarento e ganancioso” e sofria as consequências das perseguições.

Depois de séculos dessas perseguições, os judeus da Europa concluíram, na década de 1880 (Século 19), que a única forma da população judaica ficar segura é se ela tivesse seu próprio Estado-Nação. O local escolhido para esse “Estado Judeu” foi a Palestina, onde há mais de 2000 anos havia existido o Reino de Israel. Esse movimento foi chamado de sionismo e deu origem à primeira onda migratória de judeus para a Palestina, ou a Primeira Aliá.

Uma Primeira Guerra

A Palestina do final do Século 19 e início do Século 20 estava sob o domínio do Império Otomano. Inicialmente, os imigrantes judeus que chegavam lá eram vistos com bons olhos tanto pelos árabes mais ricos, que lhes venderam muitas terras, quanto pela população em geral, já que os novos habitantes representavam uma nova clientela para suas produções e também incentivavam a geração de empregos.

Porém, as tensões começaram a aumentar quando ficou claro que aquela nova população judia chegou não com o objetivo de conviver com os árabes, mas sim de substitui-los. Apesar de ser ambientado décadas depois desse período inicial, Palestina 36 faz uma ótima representação dessa dinâmica, mostrando como as pressões econômicas e sociais vão causando a radicalização de parte da população palestina.

Ainda no início do Século 20, é a Primeira Guerra Mundial que causa mudanças radicais e acirra as disputas na região. De um lado, a Tríplice Entente era liderada pela França, pelo Império Britânico e pela Rússia. Porém, o Império Otomano estava alinhado com a Tríplice Aliança, formada por Alemanha, Áustria-Hungria e, inicialmente, pelo Reino da Itália.

Precisando de toda ajuda possível contra o vasto Império Otomano, o Império Britânico prometeu aos árabes da Península Arábica, por meio da Correspondência Huceine-McMahon entre 1915 e 1916, o reconhecimento de um grande Estado Árabe caso eles se juntassem à luta ao lado da Tríplice Entente. Isso levou o Xarife de Meca a lançar a grande Revolta Árabe, que foi parcialmente dramatizada no filme Lawrence da Arábia.

Porém, a saída da Rússia da guerra, causada pela Revolução de 1917, aumentou a pressão sobre os britânicos. Com o objetivo de conquistar o apoio de judeus no Império Britânico e nos EUA, o que poderia envolver os EUA ativamente na guerra, os britânicos publicaram a Declaração Balfour ainda em 1917. O texto prometia o reconhecimento de um Estado Judeu na Palestina caso o Império Britânico derrotasse o Império Otomano.

Assim, os britânicos prometeram tanto um Estado Árabe quanto um Estado Judeu na Palestina. Mas a situação estava prestes a ficar ainda mais complicada.

Semanas depois da publicação da Declaração Balfour em novembro de 1917, os bolcheviques que agora governavam a Rússia revelaram a existência de um acordo secreto entre o Império Britânico e a França, que havia sido costurado no ano anterior, 1916. Em termos simples, o Acordo Sykes-Picot dividia a maior parte do território do Oriente Médio entre os britânicos e os franceses, sem prever nem um Estado Árabe e nem um Estado Judeu. Os dois lados ficaram altamente insatisfeitos.

Em 1920, foi estabelecido o Mandato Britânico da Palestina, o que deixava toda a população sob um governo britânico. Muçulmanos e cristãos árabes já haviam formado associações para se opor à Declaração Balfour e ao estabelecimento de um Estado Judeu. Os distúrbios de 1920 e os de 1921 deram início a embates violentos entre os judeus, os árabes e as forças de segurança britânicas. Os tumultos de 1921 resultaram em quase 100 mortos, sendo eles 45 judeus e 48 árabes.

Os judeus formaram a milícia Haganá para se defender dos ataques, mas ela era altamente amadora. O grupo só se tornou mais organizado e bem treinado depois dos tumultos de 1929, que deixaram 116 árabes e 133 judeus mortos.

Esses conflitos da década de 1920 foram apenas uma prévia do que estava por vir.

Palestina 1936

A Palestina que encontramos em Palestina 36 ainda está sob o Mandato Britânico e recebe o grande fluxo de imigrantes judeus da Quinta Aliá, principalmente os que estão fugindo da perseguição causada pela ascensão dos nazistas na Alemanha. Isso turbina as tensões sociais já existentes, com trabalhadores e intelectuais palestinos percebendo que o governo britânico está, na prática, beneficiando os judeus.

Um exemplo disso é a dificuldade que os camponeses palestinos encontram para provar a posse de suas terras. Apesar das terras pertencerem há vários séculos a suas famílias, eles precisam registrá-las do zero com as autoridades britânicas para que a posse seja reconhecida. É o tipo de burocracia que dificulta que as propriedades dos palestinos sejam respeitadas e facilita a cessão de terras para os imigrantes judeus.

O que o filme mostra é que a população árabe, formada por muçulmanos e cristãos, estava assistindo em câmera lenta o crescimento da influência e do poder dos judeus na Palestina, mesmo sob a administração britânica. O incidente mostrado logo no início do filme, quando trabalhadores descobrem que os barris de cimento que eles estavam descarregando na verdade possuíam armas, realmente aconteceu. O carregamento estava destinado a um mercador judeu, o que deixa os árabes preocupados com a possível tomada armada da região.

Diante disso, fica mais fácil para uma milícia palestina recrutar combatentes e dar início à Revolta árabe de 1936–1939. Mesmo as pessoas mais moderadas ajudam os milicianos diante da opressão vinda do exército britânico e das pressões exercidas pelo imigrantes judeus.

Os combates são parcialmente suspensos durante as deliberações da Comissão Peel, que visiva traçar um plano que iria causar a diminuição de tensões entre árabes e judeus. Porém, o chamado Plano Peel, que propunha uma divisão de terras entre árabes e judeus, desagradou significativamente os dois lados. Enquanto os judeus esperavam que iriam receber a permissão para constituir um Estado em toda a Palestina, os árabes viram que a proposta “salvadora” envolvia a perda oficial de grandes partes de seu território.

Uma das justificativas da Comissão Peel para essa proposta era o fato de que o nacionalismo judeu e o nacionalismo árabe haviam se tornado irreconciliáveis. Depois de décadas de imigrações e de tensões sociais, os sistemas educacionais dos dois lados reforçavam as identidades judaicas e árabes das crianças desde tenra idade, criando lealdades e animosidades incompatíveis tanto com o Mandato Britânico quanto com uma coexistência pacífica em uma nação compartilhada.

Os árabes retomaram a revolta após a publicação do Plano Peel em 1937, e as lutas iriam durar até 1939, quando foi publicado o Livro Branco de 1939.

Por volta da mesma época, a milícia judaica Irgun (resultado de uma dissidência radical do Haganá), passou a atacar alvos britânicos, visando expulsá-los da região. Com o final da Segunda Guerra Mundial, entre 1944 e 1948, o Haganá, o Irgun e o Lehi (resultado de uma dissidência ainda mais radical do Irgun) sustentaram uma violenta campanha de insurgência com ataques terroristas e assassinatos contra os britânicos.

Em novembro de 1947, em uma Assembleia Geral da ONU presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha, a criação do Estado de Israel foi aprovada. Isso imediatamente deu início à Guerra da Palestina de 1948, durante a qual ocorreram muitos massacres de civis dos dois lados. A maior parte desses ataques foram realizados pelas milícias judaicas Haganá, Irgun, Lehi e Palmach, que seriam dissolvidas e cujos membros iriam formar as Forças de Defesa de Israel (IDF).

Israel 2026

Os chocantes ataques realizados por terroristas palestinos em 7 de outubro de 2023 causam a impressão de que essa é uma violência sem antecedentes em um conflito que, se levarmos em conta os tumultos de 1920, já dura mais de 100 anos.

Porém, é possível enxergar os antecedentes tanto nos massacres realizados na guerra de 1948 quanto nas operações militares realizadas por Israel na Faixa de Gaza nos últimos 20 anos (como a Operação Margem Protetora, que deixou mais de 1400 civis mortos). Os muitos foguetes que o Hamas já lançou contra a população de Israel também acabam servindo como antecedente, já que poderiam provocar muitas milhares de mortes de civis se o avançado sistema de defesa israelense não existisse.

Independente das raízes desse conflito, é preciso tentar entender os mecanismos que o mantém tão intenso quanto letal. Mais que isso, é preciso entender que esse não pode ser visto como um conflito do bem contra o mal, já que isso reduz os lados beligerantes a estereótipos que ajudam a manter essa longa vendeta. Há quem realmente acredite que “todos os israelenses são genocidas”, assim como há quem diga que “todos os palestinos são terroristas”.

Talvez a raiz do problema seja a lógica sionista de que a Palestina pertence estritamente aos judeus. Obviamente, nem todos os israelenses pensam dessa forma, mas as facções mais extremistas da população e da classe política parecem dispostas a ir até as últimas consequências para se livrar dos palestinos. A diferença entre o radicalismo dos terroristas árabes e o radicalismo dos sionistas é que o Estado de Israel realmente possui os meios para realizar um genocídio.

No dia seguinte ao ataque de 7 de outubro de 2023, uma colunista do jornal israelense The Times of Israel lembrou que foi o próprio premier Benjamin Netanyahu que apoiou o poder do Hamas na Faixa de Gaza (apesar desse ser uma política que o antecede). A ideia era evitar que a Autoridade Palestina, que já exerce o poder na Cisjordânia, também chegasse ao poder em Gaza, revelando uma estratégia de dividir e conquistar.

Ao invés de lidar com as demandas de um corpo político pacífico e respeitado, os governos de Netanyahu tiveram que lidar apenas com radicais e terroristas. Assim, ao invés de utilizar canais diplomáticos, ele sempre teve uma justificativa para recorrer à violência. Em 7 de outubro de 2023, parte da população de Israel pagou caro por essa estratégia. Em 27 de outubro de 2026, Netanyahu vai tentar se reeleger, mesmo estando no poder desde 2009.

E talvez ele consiga, pois o ataque do Hamas também teve o efeito de levar parte dos israelenses mais moderados para posicionamentos mais próximos do radicalismo. Em um longo ensaio publicado no jornal The Guardian, o historiador e ex-soldado do IDF Omer Bartov fala sobre as suas percepções ao voltar para Israel depois do ataque de 7 de outubro.

Ele ficou surpreso ao perceber que mesmo os seus amigos mais moderados adotaram um posicionamento de “nós ou eles”. Um deles chega a afirmar que não possui “espaço” em seu coração para se preocupar com o sofrimento das crianças em Gaza, como se a empatia ou a compaixão fossem recursos finitos. As palavras desse amigo dão a entender que, por mais que ele saiba que isso não contribua para a resolução do problema ou para a segurança do povo israelense, ele está tendo uma visceral reação emocional aos violentos ataques.

Indo além, o autor do ensaio, que é um estudioso do Holocausto, compara a visão de mundo que ele encontrou nos soldados do IDF à visão de mundo dos soldados nazistas que ele estuda em sua profissão. Em um trecho, o autor exemplifica:

Tendo internalizado uma visão do inimigo (…) e da população em geral como menos que humanos e não-merecedores de direitos, os soldados observando ou realizando atrocidades tendem a considerar que os responsáveis não são eles mesmos ou suas forças armadas, mas sim o inimigo.

Milhares de crianças foram mortas? A culpa é do inimigo. Nossas próprias crianças foram mortas? A culpa definitivamente é do inimigo. Se o Hamas realiza um massacre em um kibutz, eles são nazistas. Se nós jogamos bombas de 900kg em abrigos de refugiados e matamos milhares de civis, a culpa é do Hamas por se esconder nas proximidades desses abrigos. Depois do que eles fizeram conosco, não temos outra escolha a não ser acabar com eles. Depois do que nós fizemos com eles, imagine o que eles fariam conosco se nós não os destruirmos. Nós simplesmente não temos escolha.

Obviamente, é provável que os terroristas do Hamas ou que alguns apoiadores da causa palestina recorram a lógicas semelhantes para justificar toda e qualquer violência contra israelenses. A lógica apresentada acima reflete não apenas a nossa tendência em desumanizar o outro, mas também a nossa tendência a tentar escapar da responsabilidade por nossas próprias ações.

Quando israelenses e palestinos pensam dessa forma, eles estão recriando os rudimentares mecanismos psicológicos que viabilizaram milhares de anos de perseguição aos judeus e várias décadas de opressão ao povo palestino. Enquanto os dois lados acharem que a única solução é que o outro lado seja destruído, essa repetição está tranquilamente garantida.

Mesmo se limitando a representar um determinado momento do conflito entre árabes e judeus na Terra Santa, o filme Palestina 36 consegue compor um retrato que atravessa o tempo e alcança o passado e o futuro de uma disputa tão épica quanto irracional. O que a produção acaba revelando não diz respeito apenas à árabes e judeus, mas à humanidade como um todo e à nossa trajetória sobre a superfície desse planeta.