Expresso do Amanhã: o Líder, o Príncipe e a Locomotiva da História


A segunda temporada de Expresso do Amanhã (2020) supera a primeira em todos os aspectos e jamais deixa a temperatura cair. Com uma trama ainda mais instigante e politicamente relevante, o grande destaque dessa nova leva de episódios é um vilão muito mais inteligente e diabólico, que às vezes parece vindo dos quadrinhos e às vezes parece vindo direto dos noticiários. As derrotas que ele impõe aos novos líderes do trem são algumas das mais impressionantes da ficção, deixando claro os esforços dos roteiristas para surpreender os espectadores.

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O Império Contra Ataca

Conforme podia-se prever após o final da primeira temporada, o revolucionário Layton (Daveed Diggs) jamais tem a oportunidade de construir um sistema democrático à bordo do trem que carrega os últimos sobreviventes da humanidade. O “mítico” Joseph Wilford (Sean Bean) reaparece, exigindo o controle do trem e obrigando Layton a recentralizar o processo decisório para lidar com a situação. Mas mesmo que isso não tivesse ocorrido, a situação no trem não estaria nada tranquila.

A tentativa de integração entre as classes que viviam segregadas se mostra muito mais problemática do que o esperado. Além dos membros das classes mais altas não terem interesse em ficarem em pé de igualdade com os das classes mais baixas, a violência da revolução deixou cicatrizes profundas no tecido social. Aqueles das “classes médias” que ficaram contra os revolucionários perderam amigos e familiares nas batalhas da temporada anterior e não estão interessados em aceitar os fundistas (classe mais baixa, ficava isolada no fundo do trem) de braços abertos.

Esse seria um desafio formidável o suficiente para Layton, mas ele precisa lidar com isso enquanto também tenta evitar que o trem seja tomado por Wilford. Um vez que o Snowpiercer e o trem de Wilford se tornam um só, os dois lados precisam estabelecer “relações internacionais”, com mecanismos de fronteira, diplomacia e comércio sendo estabelecidos. Layton e seus aliados agora possuem inimigos internos e externos com os quais precisam lidar.

A investigação dos inimigos internos fica a cargo de Bess Till (Mickey Sumner), a nova detetive do trem, que tenta solucionar uma série de ataques antes que uma convulsão social se inicie. Ela é a primeira a perceber que a insatisfação interna pode cada vez mais se transformar em apoio a Wilford, o “misericordioso” líder que estava morto e que agora vive. Melanie (Jennifer Connelly) havia mantido o mito de Wilford vivo para manter o controle do trem, mas ela não esperava que ele voltasse em carne e osso para fazer uso daquela admiração.

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O Problema da Esperança

A esperança pode ser considerada o principal combustível da raça humana. As pessoas seguem vivendo e a História segue em sua marcha porque a humanidade segue acreditando em dias melhores. E quando a realidade nos oferece sinais de que os dias que estão por vir não serão tão bons assim, nós recorremos a qualquer figura, real ou imaginária, que nos ofereça uma previsão mais otimista. Existem muitos negócios no mundo cujo principal produto é, no fim das contas, alguma forma de esperança. Vende-se sonhos, promessas, possibilidades.

Em Expresso do Amanhã (2020), Wilford sabe exatamente como vender esses sonhos para os habitantes/passageiros do Snowpiercer e seus 1034 vagões. Ao contrário de Layton, ele não oferece liberdade e igualdade, mas ordem e privilégio. Mais que isso, ele oferece a imagem de uma figura paternal e protetora, que jamais deixaria nada acontecer com seus fiéis seguidores. Ele também se mostra como uma figura justa e severa, disposta a punir quem quer que seja por quaisquer desvios de comportamento. As pessoas esperam que ele mantenha cada coisa em seu lugar e cada lugar com sua coisa.

O estilo de liderança de Wilford parece saído diretamente da obra O Príncipe, clássico de Nicolau Maquiavel que é considerado a pedra fundamental da ciência política. Assim como Maquiavel, Wilford entende que se o “príncipe” não pode ser amado, ele deve ser temido. Suas ações não possuem o objetivo de melhorar as condições de vida da população, mas sim o de obter e manter poder absoluto sobre aquele mundo. Ele busca o poder não para cuidar e ajudar, mas para controlar e manipular. Indo além, pode-se dizer que ele não sabe como realmente exercer o poder, mas apenas como exercer o controle sobre a população.

É por isso que ele não tem o menor interesse nos esforços científicos de Melanie. Enquanto o único lugar habitável do mundo for o interior de seu trem, ele tem a oportunidade de ser o “líder supremo” da humanidade. Ele nega a ciência para poder se manter no controle; para manter a palavra final em qualquer assunto; para se manter como única fonte de sobrevivência e de conforto. Em outras palavras, para se manter como única fonte de esperança. Seu frágil ego precisa manter a ilusão de que ele é indispensável para a sobrevivência da humanidade.

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E assim, Wilford sempre mostra publicamente o seu lado mais popular e paternal, enquanto nos bastidores ele trata seus mais fiéis e fanáticos seguidores como peões descartáveis no jogo pelo poder. Os extremistas que juraram lealdade e fizeram a sua vontade ao longo dos anos podem ser facilmente eliminados em nome de uma jogada política. São pessoas que o viam como um pastor cuidando fielmente de suas ovelhas, mas que se surpreendem quando ele as leva para o abate no chão do matadouro.

O problema da esperança é que ela não precisa corresponder à realidade. Enquanto seus apoiadores dificultam as vidas de Layton e seus aliados, Wilford repetidamente usa o futuro da humanidade como refém, realizando jogos de brinkmanship no último refúgio da raça humana. A única humanidade que lhe interessa é uma humanidade que ele possa controlar; se não puder controlá-la, não há porque mantê-la viva. Isso o torna capaz não apenas de sabotar os esforços científicos, mas também de provocar crises de potencial catastrófico apenas para se apresentar como um benevolente salvador.

O que torna essa segunda temporada ainda mais impressionante é que Wilford é um mestre nesses jogos de manipulação. Seu autoritarismo não é mantido pela força, mas pela vontade que as pessoas possuem de tê-lo como líder. A jogada mais genial que ele faz não envolve violência ou ameaças, mas é tão avassaladora que a única coisa que Layton pode fazer é lhe entregar pacificamente todo o poder. Esperançosos, muitos dos milhares de passageiros do Snowpiercer fizeram questão de deixar suas vidas à mercê de um completo psicopata.

Mas essa disputa está longe do fim e essa temporada termina com um cliffhanger. Os dois lados sofreram derrotas significativas ao longo desses dez episódios, o que apenas aumenta a expectativa para os próximos rounds na já confirmada terceira temporada. Expresso do Amanhã (2020) segue  muito menos como uma série de ação e muito mais como um thriller político, no qual o que está em jogo é todo o futuro da humanidade.

 

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