As crônicas da vida anormal de Bojack Horseman
Como vários outros textos sobre Bojack Horseman, começo apontando para o fato de essa que é uma das séries mais aclamadas da atualidade ser uma animação com personagens antropomórficos. Inicialmente focada em satirizar o mundo das celebridades, seu grande apelo está nos temas universais tratados pela história, que conta com personagens que estão passando pelos mesmos dramas e dúvidas que muitos adultos do seculo XXI. Temas pesados acabam ficando mais palatáveis (mas nem tanto) graças ao humor negro e, às vezes, escatológico utilizado na narrativa. Isso permite que profundas reflexões sobre a vida e questões existenciais sejam colocadas em tela de uma forma que não precisa ser levada tão a sério, mas que ainda assim levam o espectador à reflexão.

A vida como ela não é
O que torna esses personagens tão verossímeis é que eles tem que lidar com a diferença entre a vida que estão vivendo e a vida que acreditam que deveriam estar vivendo. Em outras palavras, eles tem que lidar com a frustração de não estarem onde acham que deveriam estar no atual estágio de suas vidas (seja na casa dos 20 anos, como Todd, dos 30, como Diane e Princess Carolyn, ou dos 40, como Bojack). Talvez o único personagem que não se encaixe nessa constatação é Mister Peanutbutter, que, com sua personalidade sempre otimista e superficial, passa a impressão de estar o tempo todo em negação em relação às coisas da vida. Porém, especialmente na terceira temporada, mesmo ele tem que lidar com as próprias inseguranças e os problemas do mundo, que ele não pode mais fingir que não existem.

Tanto Bojack quanto os outros personagens centrais parecem estar vivendo vidas bem distante do “normal”. O jovem casal formado por Diane e Mister Peanutbutter é o que parece estar mais próximo da normalidade, mas as diferenças entre eles colocam um stress quase constante na relação. Já Princess Carolyn sonha em se casar e ter filhos, ao mesmo tempo em que não consegue abrir mão da vida de alta adrenalina e agressividade como agente de estrelas hollywoodianas. Enquanto isso, Todd navega a vida entre uma aventura insólita e outra, não dando sinais de estar indo em qualquer direção em particular.

Dilemas como esse não são exceções, mas sim partes de nossas vidas modernas. Talvez esse seja o novo normal.
Citações cortantes
Dentre as muitas piadas e referências à cultura pop e ao mundo das celebridades, o roteiro de Bojack Horseman consegue encaixar não apenas os dramas reais das vidas de seus personagens, mas também diálogos que ecoam nas vidas de qualquer pessoa. São passagens, na maioria das vezes, pessimistas, cínicas e quase niilistas, mas que fazem sucesso dentre os espectadores (ver listas aqui, aqui e aqui) por levá-los a refletir sobre suas próprias vidas.
Por exemplo, quando Diane diz que quer apenas colocar um ponto final em seus problemas familiares, Bojack responde:
Resolução é uma coisa inventada por Steven Spielberg para vender ingressos de cinema. É como amor verdadeiro ou as Olimpíadas de Munique: não existe no mundo real. A única coisa a se fazer agora é seguir em frente com a vida.
E essa não é a única vez que ela escuta umas duras verdades:
Sabe qual é seu problema? Você está tentando ser uma Zelda, mas você obviamente é uma Zöe. Você pode viver sua feliz vida de Zelda, nessa feliz cidade de Zelda e fingir que você é uma Zelda feliz, mas eu te conheço e essa não é você. As pessoas não mudam Diane, não de verdade. Mister Peanutbutter é uma Zelda. Ele é feliz, de bem com a vida e amoroso. Mas você e eu? Nós somos Zöes. (…) Somos cínicos, e tristes, e perversos. Há uma escuridão dentro de você. E você pode sufocar isso com burritos do tamanho da sua cabeça, mas um dia essa escuridão vai sair.
Já a diretora Kelsey Jannings (Maria Bamford), ao tentar explicar em que ponto está a vida do personagem interpretado por Bojack no filmes que estão fazendo, fala algo que vale para o próprio ator:
Mas esse momento é maior que isso. Esse é o momento em que Secretariat para de correr. Pois esse é o momento no qual você percebe que algo dentro de você está quebrado e jamais poderá ser consertado.
Em outro momento, ela tenta explicar o comportamento de Bojack e acaba atingindo uma parcela bem maior da população:
Ele ficou famoso na casa dos 20 anos, então ele vai ficar nos 20 pra sempre. Depois que você fica famoso, você para de crescer, porque não precisa mais. Toda celebridade tem uma idade de estagnação. (…) Ah, não acontece apenas quando você fica famoso. Sua idade de estagnação é quando você para de crescer. Para a maioria das pessoas, é quando elas se casam e se acostumam com a rotina. Você conhece alguém que te ama incondicionalmente e que nunca vai te desafiar ou querer que você mude… e então você nunca muda.
Quando Diane pensa em fazer trabalho humanitário em uma zona de guerra para dar um significado maior a sua vida, Mister Peanutbutter tenta carinhosamente demovê-la da ideia:
Querida, você sabe que apoio tudo o que quiser fazer, mas você não vai encontrar o que está procurando nesses lugares horríveis e de mentirinha. O universo é um vazio cruel e indiferente. A chave para ser feliz não é buscar significado; a chave é apenas se manter ocupado com besteiras sem importância, e, mais cedo ou mais tarde, você morre.
E depois de passar um episódio inteiro tentando estragar um casamento e falhando miseravelmente, Bojack chega a certas conclusões:
Sabe, às vezes eu acho que nasci com um vazamento, e qualquer bondade com a qual eu comecei foi lentamente escorrendo de mim e agora acabou. E nunca vou recuperá-la. É tarde demais. A vida é um série de portas se fechando, não é?
Bojack Horseman e os Significados
Enquanto no mundo real a maioria das pessoas ainda busca a salvação na religião ou coisas parecidas, os humanos e os “animais” de Bojack Horseman tentam ignorar os aspectos mais desagradáveis da vida por meio de projetos pessoais que servem ou para se manterem ocupados ou para projetarem uma imagem de relevância no mundo e/ou na sociedade.
Em busca da felicidade (ou algo que o valha), eles tem que superar diversos tipos de atrasos e dificuldades apenas para, no final, descobrirem que eles mesmos são seus maiores obstáculos. Como todos nós, eles estão encarcerados não apenas no ciclo de erros e acertos que é a vida, mas também na inexorável prisão que é ser quem eles são, ao invés de algum ideal de pessoa que acham que poderiam ou deveriam ser. Apesar da forte veia humorística, a série atinge o seu ápice quando mostra esses personagens descobrindo essas verdades sobre a vida e sobre eles mesmos, o que, consequentemente, faz o espectador ver-se neles.

Está vendo? Não estamos condenados. No grande esquema das coisas, nós somos apenas pontinhos que um dia serão esquecidos. Então não importa o que fizemos no passado, ou como seremos lembrados. A única coisa que importa é o agora, este momento, este espetacular momento que estamos compartilhando.
E no fim, essa é apenas uma comédia ótima para quem quer passar o tempo sem necessariamente esquecer da vida. Recomendo.







