Crítica: A Morte de Stalin

The Death of Stalin, Reino Unido/França, 2017



Sátira política lança uma visão jocosa sobre alguns dos episódios de um dos períodos mais sombrios da História

★★★★☆


Antes de mais nada, é importante notar que A Morte de Stalin é uma obra de ficção, e não um filme de natureza biográfica. A narrativa condensa em poucos dias eventos que ocorreram nos 10 meses seguintes à morte do sanguinário ditador. Baseando-se na graphic novel francesa La Mort de Staline, o diretor e renomado satirista político Armando Iannucci, criador de séries de sucesso como The Thick of It e Veep, foca sua adaptação nos eventos mais absurdos e inacreditáveis que cercaram o processo de sucessão do poder na União Soviética de 1953. Dessa forma, o filme está em algum lugar entre a ficção histórica e a história alternativa.

Essa abordagem especulativa é favorecida pelas muitas incertezas que cercam esse sombrio período da História da Rússia, especialmente os eventos que cercam a morte do ditador. Até hoje, especula-se sobre a possibilidade dos membros do Politburo terem envenenado Stalin, que havia começado no inverno de 1953 o que poderia ser um novo Grande Expurgo. O risco de Stalin simplesmente sentenciá-los à morte, por puro capricho ou paranoia, pode ter levado os, até então, fiéis e temerosos seguidores do ditador a realizar uma manobra absurdamente arriscada.

No filme, Josef Stalin (Adrian McLoughlin) sofre um AVC enquanto lê um “mal-educado” bilhete que lhe foi enviado pela renomada pianista Maria Veniaminovna Yudina (Olga Kurylenko). O filme começa adaptando um infame episódio real do período: depois de ouvir um concerto de Mozart pelo rádio, Stalin liga para a difusora e solicita uma gravação. Seria um pedido simples de ser atendido, não fosse pelo fato de que aquela era uma transmissão ao vivo da qual não havia registro. Desesperados e com medo de dizer “não” ao temível ditador, os responsáveis refizeram o concerto e o gravaram. Enquanto no filme eles precisam providenciar um segundo condutor para realizar a gravação, na vida real apenas o terceiro conseguiu realizar a proeza no tempo necessário, pois os dois primeiros estavam nervosos ou alcoolizados demais para o serviço.

Ainda no filme, Stalin é encontrado caído em uma poça da própria urina em seu quarto na manhã seguinte, o que leva os funcionários da casa a chamarem os outros membros do partido. A parte da poça de urina é factual, mas na realidade o ditador só foi encontrado quase 24 horas depois de passar mal, às 22:30, quando algum dos funcionários finalmente ousou entrar em seu quarto.

Entram em cena então os outros membros do Politburo: Lavrenti Beria (Simon Russell Beale), Georgy Malenkov (Jeffrey Tambor), Nikita Khrushchev (Steve Buscemi), Vyacheslav Molotov (Michael Palin), Lazar Kaganovich (Dermot Crowley), Anastas Mikoyan (Paul Whitehouse) e Nicolai Bulganin (Paul Chahidi). Esses “fiéis” subalternos parecem não saber agir sem a controladora presença do ditador, e ainda mais horas são perdidas até eles finalmente chamarem médicos para avaliar o estado de saúde do paciente. Especula-se que essa demora pode ter sido proposital, dificultando assim a recuperação do líder.

O acionamento dos médicos também foi prejudicado pelo famoso episódio do Complô dos Médicos, que foi essencialmente um movimento anti-semita iniciado pelo paranoico ditador. Stalin acreditava que os melhores médicos do país, a maioria judeus, faziam parte de uma conspiração para matá-lo e ordenou a prisão de todos eles. Dessa forma, enquanto o ditador permanecia desacordado, além dos melhores médicos do país estarem presos, seus subordinados não queriam ter o “desprazer” de informa-lo, caso ele se recuperasse, que médicos “traidores” haviam sido chamados para tratá-lo.

Quando Stalin finalmente morre, a cômica luta pelo poder que se segue opõe especialmente Beria e Khrushchev, apesar do desajeitado Malenkov ser o novo líder interino da nação. Enquanto Khrushchev é um talentoso e ardiloso operador político, Beria detém o controle do poderoso e temido NKVD, um Ministério do Interior que controlava as forças de segurança e o serviço secreto, além de outras instituições civis. A principal desvantagem de Beria é que ele é, ao mesmo tempo, temido e desprezado pelo outros atores políticos, já que é um conhecido sádico e predador sexual.

Para enfrentar o poder de fogo de Beria, Khrushchev tenta conquistar o apoio do chefe do Exército Vermelho e Marechal de Campo Georgy Zhukov (Jason Isaacs). Durante esse processo, os operadores políticos ainda tem que lidar com os filhos do ditador, Svetlana (Andrea Riseborough) e Vasily Stalin (Rupert Friend). Vasily, que morreu de alcoolismo crônico em 1962, é mostrado como um bêbado instável e infantilizado que tenta esconder do pai a morte da maior parte da seleção nacional de hóquei no gelo em um acidente de avião, detalhes que são factuais.

A trama culmina com uma reunião que não passa de uma emboscada para o perdedor do conflito político, que é preso, julgado e executado, pondo fim a esse período de disputas e iniciando a consolidação no poder do vencedor. Essa emboscada e os outros eventos realmente ocorreram, mas com meses de intervalo entre um e outro.

O filme deixa claro como a brutalidade de Stalin deixou uma oportunidade política perfeita para seus sucessores: para cair nas graças do povo e de outros atores políticos, tudo o que eles precisavam fazer era implementar algum “pacote de bondades” que revertia as decisões mais violentas e impopulares do ditador. A disputa entre Beria e Khrushchev é, inicialmente, uma corrida para o lançamento desses tipos de medidas. Mas a narrativa não nos deixa esquecer que essas são as mesmas pessoas que, sob comando ou não do ditador, participaram de julgamentos ilegais e assinaram penas de morte para réus que eles sabiam ser inocentes.

Parece improvável que uma narrativa cômica possa ser extraída desses acontecimentos, mas Iannucci aplica todo seu know-how para expor, de forma muitas vezes hilária, os absurdos daquele regime ditatorial. Em 2009, o diretor já havia feito algo semelhante quando satirizou o conturbado processo de aprovação de uma guerra contra o Iraque no filme Conversa Truncada. Ele faz do humor negro uma das melhores formas de expor os exageros (e, porque não, a idiotice) de pessoas poderosas que se levam muito mais a sério do que deveriam, técnica que também aplica em suas já mencionadas séries televisivas.

Ainda assim, o impacto do humor em A Morte de Stalin é menor do que o dessas outras produções, pois as idiossincrasias ocidentais e o uso da língua inglesa ficam claramente deslocados no contexto dos corredores do poder da antiga União Soviética. Isso não chega a estragar as piadas ou a situação em geral, mas exige um pouco mais da suspensão de descrença do espectador. O fato de que o filme tem incomodado o atual governo russo a ponto de ser banido no país, mostra sua relevância como questionamento do establishment político.

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