Todos os Vícios e Todos os Viciados
É difícil fazer um homem entender algo, quando seu salário depende de ele não entender. (Upton Sinclair)
Diante da epidemia do consumo de drogas que atinge o mundo e que resulta em situações chocantes em cidades como São Paulo, Los Angeles, Frankfurt e Londres, muitos de nós podemos nos perguntar como a situação ficou tão ruim em lugares tão diferentes. Parte da resposta está na tendência humana a se viciar em substâncias que aliviam a dor e a ansiedade. Porém, outra parte da resposta está na tendência humana de ignorar os efeitos negativos de atividades econômicas que nos dão um grande retorno financeiro.
O vídeo abaixo ilustra como uma atividade econômica completamente ilegal pode ser utilizada para criar estruturas paralelas de poder e criar suas próprias “leis”, ou seus próprios conceitos de certo e errado. É o tipo de situação que, se deixada evoluir ao longo do tempo, pode resultar não apenas em graves problemas de segurança pública, mas também em ameaças reais para a soberania nacional. Um exemplo extremo disso, apesar de não ter origens no narcotráfico, é o pesadelo da guerra de gangues no Haiti.
Em determinado ponto da matéria acima (disponível também em formato de texto), o autor afirma que:
O grupo estabelece um código de conduta rígido para manter “a ordem e o respeito dentro da comunidade” (ou “quebrada”). Entre as principais regras aos membros, estão proibições de agressões, traições afetivas (“talaricagem”), som alto à noite, vínculos com outros grupos e até uso de crack e do medicamento rivotril, “pelo efeito devastador que elas causam na vida de quem usa”. O remédio só é liberado por membros que demonstrem receita médica.
Esse trecho evidencia que os criminosos entendem a importância de se manter a ordem interna da organização, tentando evitar que seus membros se tornem viciados. Não seria bom para os “negócios” se os vendedores e soldados do tráfico atingissem o mesmo nível de degradação física e mental vista nas “cracolândias” ao redor do mundo, com pessoas utilizando vias públicas como banheiros e estando dispostas a fazer qualquer coisa para conseguir a próxima dose.
Ou seja, enquanto se importam com os efeitos do vício em suas comunidades internas, os traficantes não veem problemas em causar degradações de grande escala na sociedade em geral. Eles se importam com o bem-estar de seus membros, mas não com o bem-estar de seus clientes. Por serem organizações criminosas, esse nível de indiferença pelo bem-estar público é até esperado. Porém, há outros tipos de negócios “viciantes” que acabam seguindo uma lógica semelhante.
É provável que os traficantes se considerem responsáveis apenas pela distribuição de seus produtos, não pelos efeitos que eles exercem sobre as vidas das pessoas e sobre a sociedade em geral. Uma lógica semelhante foi apresentada por um produtor de fake news nessa matéria de 2017, na qual ele afirma:
O que fazemos são modificações [sobre o noticiário] para tornar a notícia mais fácil e interessante. (…) Quem tem de saber o que é verdade ou mentira é quem lê a matéria.
Esse posicionamento revela a tendência humana de tentar justificar qualquer atividade que lhe traga algum lucro. Seja em um pequeno negócio familiar ou em uma grande corporação, os responsáveis sempre dão um jeito de justificar as ações que lhes dão retorno financeiro. A dissonância cognitiva causada por eventuais questões éticas sempre é resolvida com a ajuda de lógicas que ignoram, minimizam ou não se responsabilizam pelo sofrimento alheio.
Isso é mostrado em filmes como O Informante e Obrigado por Fumar, que evidenciam as práticas abusivas da indústria do tabaco para manter os fumantes viciados em seus produtos. Já produções como A Qualquer Preço e O Preço da Verdade mostram os esforços feitos por grandes corporações para não serem responsabilizadas pela poluição de fontes de água potável, contaminações que podem ter custado muitas vidas.
Já séries como Narcos e Top Boy revelam parte das lógicas internas dos grupos criminosos responsáveis pelo tráfico de drogas. Mas, para entender a atual crise provocada pelo consumo de drogas, também é importante conferir as histórias de minisséries como Dopesick e Império da Dor, que revelam como as práticas comerciais da indústria farmacêutica dos EUA ajudaram a popularizar o consumo de opioides (como o fentanil) e a causar a atual epidemia de consumo dessas drogas nos EUA e no restante do mundo.
O filme Máfia da Dor se passa nesse universo, mostrando o quão fácil pode ser para as pessoas abandonarem quaisquer preocupações éticas quando estão ganhando dinheiro. Nele, a desesperada mãe solteira Liz Drake (Emily Blunt) sai da pobreza e dá a volta por cima quando se torna representante comercial de uma pequena farmacêutica, que chega a subornar médicos para receitarem seu produto. Quando ela descobre os efeitos negativos do medicamento, já é tarde demais para as pessoas que ficaram viciadas e que morreram de overdose.
Paralelamente, filmes como Passando dos Limites e O Herdeiro das Drogas mostram como a venda de medicamentos em mercados paralelos se tornou um fonte alternativa de renda em regiões pobres dos EUA.
Mas a primeira situação semelhante a uma cracolândia da qual se tem notícia ocorreu muito antes do desenvolvimento da cocaína, do crack e do fentanil. Na Londres da primeira metade do Século 18, foi o gim que provocou o caos no tecido social da cidade, com o período ficando conhecido como a loucura do gim (em inglês, gin craze). A bebida caiu no gosto popular das classes mais baixas e levou várias décadas até ficar sob controle, exigindo muitas campanhas e várias leis para controlar a comercialização da bebida.
A imagem abaixo mostra dois cartazes que visam desincentivar o consumo do gim. No primeiro, as pessoas que consomem cerveja são mostradas como saudáveis e bem-sucedidas. No segundo, os consumidores de gim são mostrados como sujos, degradados e negligentes com crianças e com o trabalho.
Viciados em Telas
Mas nem todos os vícios são com base em substâncias químicas. Os documentários O Dilema das Redes e A Conspiração Consumista revelam o quão fácil é para as grandes empresas de tecnologia “hackearem” o cérebro humano. Neles, executivos dessa indústria revelam algumas das técnicas que suas empresas utilizaram para maximizar a captura da atenção humana ou para garantir que as pessoas comprem, de forma rápida e impulsiva, produtos que elas não precisam.
Com o objetivo de maximizar o lucro e a retenção de clientes, eles passaram a desenvolver experiências de usuário que maximizavam o tempo de uso das telas e minimizavam as chances que as pessoas tinham de refletir sobre as compras que elas estavam prestes a fazer (foi assim que surgiram as compras de clique único, por exemplo). Não é uma surpresa, portanto, quando vários desses executivos afirmam que não permitem que seus próprios filhos utilizem seus produtos digitais durante a infância e a adolescência.
Essas técnicas também passaram a ser utilizadas em plataformas de apostas online. O problema do vício em jogatina já existia bem antes da Internet, como mostrado em filmes como Parceiros de Jogo e Apostando Tudo. Porém, nesses casos as pessoas tinham que se locomover até cassinos ou outros tipos de estabelecimento para darem vazão ao vício. Agora, os viciados no jogo podem se afundar em dívidas e se arruinar financeiramente da segurança do lar, como fica claro no vídeo a seguir.
Uma variação desse vício em plataformas de tecnologia está no uso exagerado de ferramentas de inteligência artificial, como o ChatGPT e similares, já que algumas pessoas estão se perdendo nas realidades criadas pelos bots montadores de frases. Esse ainda não é um problema generalizado, mas, dado a quantidade de investimentos que estão sendo feitos nessas ferramentas, ele tem potencial para ser catastrófico.
Diante de tudo isso, fica claro que existe um vício que sustenta todos os outros: o vício em ganhar dinheiro. Filmes como O Lobo de Wall Street e A Grande Aposta, que são inspirados em histórias reais, mostram o quão irracional e predatória a busca por lucro pode se tornar. Obviamente, as empresas existem para dar um retorno financeiro para seus proprietários. Porém, algumas atividades econômicas podem representar ameaças existenciais tanto para as pessoas quanto para a nossas civilizações.
A série Round 6 oferece ótimos exemplos do quão grave essa busca por retornos financeiros pode se tornar. Nela, muitos personagens vão até as últimas consequências para tentar garantir um prêmio milionário. Porém, eles ficam tão focados em tudo aquilo o que eles podem ganhar, que se esquecem de levar em conta tudo o que eles têm a perder.