Crítica: O Irlandês
The Irishman, EUA, 2019
O Irlandês nos lembra do que suas estrelas são capazes e de que a vida real é a mais trágica das histórias
★★★★★
Independente de todas suas camadas, O Irlandês é acima de tudo uma história fantasticamente bem contada. O filme é um testamento ao talento do diretor Martin Scorsese e dos atores Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci, que mostram que ainda são capazes de feitos artísticos que beiram o inacreditável. Mesmo com três horas e meia de duração e com imperfeições na tecnologia de rejuvenescimento digital dos personagens, essa é uma obra que cativa o espectador de uma forma que poucos filmes ainda o fazem. Se durante a primeira metade da projeção Scorsese segue todas as regras do gênero, na segunda ele vai lenta e magistralmente construindo uma situação cujo final é tão trágico quanto previsível.
Além dos méritos próprios, O Irlandês também se beneficia da nostalgia associada ao seu diretor, a suas estrelas e aos filmes de gangster. É impossível olhar para qualquer uma das cenas e não se lembrar de obras como O Poderoso Chefão, Os Bons Companheiros e Cassino. Diferente da maioria dos outros trabalhos dessa equipe, esse é um reencontro entre velhos amigos e colaboradores. Eles nos lembram de que ainda estão vivos e ativos, mesmo quando fica claro que estão sentindo o peso da idade ao interpretar versões várias décadas mais jovens de seus personagens.
E sim, O Irlandês é um filme sobre a máfia. A narrativa traz mais uma vez para as telas as famílias, os crimes, a corrupção e a violência de um submundo que funciona estritamente de acordo com as próprias regras. Aquela é uma realidade que existe à margem da civilização, nas quais os conceitos de ética e justiça não parecem se aplicar. Opera-se sob a lei do mais forte, ou do mais violento, ou do mais respeitado. Roubo, assassinato e extorsão são apenas coisas da vida para esses personagens.
Mas Scorsese faz questão de nos lembrar de que ao viverem pela espada eles também morrem pela espada. Os letreiros que mostram o ano e a causa da morte de alguns deles servem para expor a efemeridade daquelas vidas. Enquanto os vemos poderosos e sorridentes, as informações nos mostram que a maioria deles terá mortes repentinas e violentas, e que irão passar seus últimos momentos em uma poça do próprio sangue. Nada é para sempre e todo mundo tem uma data de partida.
O Irlandês também é a fantástica história real da queda e desaparecimento do lendário Jimmy Hoffa (Al Pacino), que pode ser considerado o líder sindical (da International Brotherhood of Teamsters, ou Irmandade Internacional dos Caminhoneiros) mais admirado da História dos EUA. Os acontecimentos são baseados nas confissões de Frank Sheeran (Robert De Niro), publicadas em 2004 no livro O Irlandês: Os Crimes de Frank Sheeran a Serviço da Máfia. Sheeran era um veterano da Segunda Guerra Mundial que passou a trabalhar para o mafioso Russell Bufalino (Joe Pesci) algum tempo depois de retornar para os EUA.
Hoffa é uma figura até hoje muito querida para muitos norte-americanos. Apesar dos laços com a máfia (que usava o fundo de pensão do sindicato como fonte de financiamento para hotéis e cassinos), sua atuação como sindicalista resultou em ganhos trabalhistas significativos para muitos caminhoneiros. Porém, assim como a máfia, ele também parecia atuar fora das regras da ética e da justiça, usando sua influência para intimidar desafetos e sindicatos concorrentes. Para ele, os fins pareciam justificar os meios.
Seu misterioso desaparecimento apenas aumentou o seu status lendário, a ponto de sua história já ter sido trazida para o cinema por Danny DeVito e Jack Nicholson em Hoffa: Um Homem, Uma Lenda, filme de 1992. Oficialmente, o caso jamais foi resolvido, e o relato de Sheeran, apesar de crível e parcialmente corroborável, não é unanimemente aceito. Tal relato mostra que o maior erro de Hoffa foi passar a acreditar em sua própria lenda, em sua própria grandiosidade. Ele se considerava intocável em uma realidade na qual nem mesmo o presidente dos EUA e sua família eram intocáveis. E talvez os irmãos Robert e John Kennedy tenham cometido o mesmo erro.
Mais do que intocável, Hoffa se considerava o “dono” do sindicato. Após cumprir quatro anos de prisão e de perder parte de sua influência, seus últimos anos foram dominados pela ideia fixa de retornar à presidência da instituição. Cego pela sede de poder e incapaz de compreender a situação na qual havia se colocado, ele pareceu se esquecer da natureza dos homens da máfia com quem estava lidando. Sheeran teve que enfrentar a frustração de tentar ajudar alguém de quem ele gosta quando a própria pessoa não parece interessada em se ajudar. Assim como os prisioneiros de guerra que Sheeran costumava executar, Hoffa parecia empenhado em cavar a própria cova.
O Irlandês também é um desabafo sobre uma traição tão íntima quanto inevitável. A atuação de Sheeran como segurança de Hoffa havia aproximado não apenas os dois homens mas também as suas famílias. Os laços de amizade entre os dois já haviam se tornado tão ou mais fortes do que aqueles entre Sheeran e Bufalino. Isso torna especialmente comoventes as repetidas tentativas que Sheeran faz para convencer o amigo a encarar a realidade de sua situação e, nem que seja temporariamente, aceitar os limites impostos pelos mafiosos. Porém, diante de uma teimosia intransponível, só lhe resta fazer o que lhe é ordenado.
No livro Um Espião Perfeito, o autor John Le Carré escreveu: “O amor é qualquer coisa que você ainda pode trair. Só ocorre uma traição se você ainda ama.”
Tudo isso é mostrado por meio de atuações marcantes do trio de protagonistas. Dentre eles, Joe Pesci é o que mais se destaca, pois entrega um trabalho impecável com um personagem que está fora de sua zona de conforto. Diferente dos tipos violentos e explosivos que interpretou em Os Bons Companheiros e em Cassino, Bufalino é um personagem calmo e contido, que jamais precisa subir seu tom de voz e que pode se comunicar de forma clara e ameaçadora apenas com um olhar.
Já o elenco de apoio dá um show à parte. As atuações de nomes como Harvey Keitel, Bobby Cannavale, Stephen Graham e Anna Paquim fazem a diferença na hora recriar o mundo daqueles personagens. Paquim tem uma participação pequena e marcante como uma das filhas de Sheeran, deixando o espectador curioso para conhecê-la melhor. Porém, uma vez que o filme é baseado nas memórias de um pai alienado e distante, talvez não havia muito material com o qual o roteirista Steven Zaillian pudesse trabalhar.
O rejuvenescimento digital dos protagonistas pode ser uma fonte de distração durante a primeira metade do filme, mas isso logo é superado depois que o espectador é capturado pela técnica narrativa, pela história e pela trilha sonora (que nos dá um novo tema inesquecível). Sheeran pode ser um narrador não-confiável, mas ele coloca nas mãos de Zaillian e Scorsese uma história épica e envolvente o suficiente para justificar a interrupção da aposentadoria de Pesci e o envolvimento de algumas das maiores lendas do cinema mundial.
O Irlandês também é uma reflexão sobre a passagem do tempo e a velhice. Quando Sheeran finalmente resolveu contar a sua história, as pessoas envolvidas e suas ações já não eram nada mais do que memórias na cabeça de um velho. Os que não morreram violentamente envelheceram na prisão, e foram “pegos” pelo câncer, pela artrite e por derrames. O tempo lhe permite colocar tudo aquilo em perspectiva e se arrepender principalmente das coisas que não fez, da vida e dos relacionamentos que ele não construiu.
A única coisa que resta àquele velho frágil e solitário, que em algum dia de um passado remoto foi alguém importante, é esperar pela sua hora enquanto deixa a porta do quarto entreaberta, assim como fazia o seu grande amigo Jimmy Hoffa.