Os Pesadelos Existenciais de Alien: Earth


A combinação de ação, terror e ficção científica de Alien: Earth pode não ser perfeita, mas ela certamente é divertida, ousada e tematicamente relevante. O criador Noah Hawley mostra que realmente é um fã da franquia e inclui diferentes elementos de todos os filmes anteriores, sejam as reflexões filosóficas de Prometheus e Alien: Covenant ou a ação estilizada de exemplares como Aliens: O Resgate e Alien: A Ressureição. Há inclusive todo um episódio claramente inspirado na estética e nos acontecimentos do filme original, Alien: O Oitavo Passageiro.

Mais importante que isso é o fato de que Hawley explora os temas introduzidos nos filmes anteriores de formas bem mais profundas e interessantes, além de introduzir novos elementos para sustentar a narrativa dos oito episódios dessa primeira temporada. A rigor, apesar de novas criaturas e de novos tipos de vida sintética, a série está focada em expandir os temas originais enquanto reproduz o terror e a alta tensão presentes nos filmes.

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A grande surpresa positiva aqui é que a série funciona acima de tudo como uma trama de ficção científica, e não apenas como um veículo de ação e terror. Ao expandir certos detalhes presentes nos filmes, a história adota uma visão altamente distópica do futuro da humanidade. É algo pessimista e assustador, mas perfeitamente possível dada a nossa História e a nossa tendência de seguir os nossos piores instintos.

Um Pesadelo Trabalhista

O planeta Terra apresentado em Alien: Earth não é dividido em países, mas sim em grandes territórios dominados por cinco grandes corporações. Dessa forma, não há governos defendendo os interesses públicos, mas apenas grandes empresas defendendo seus interesses privados. Há advogados e disputas legais entre elas, mas as “leis” aqui são os acordos feitos entre as cinco empresas. Claramente, essa situação reflete as atuais discussões sobre a influência supranacional das big techs e como isso pode moldar o futuro.

Para o público, a mais conhecida dessas empresas fictícias é a Weyland-Yutani, que aparece desde o primeiro filme da franquia e que é uma antagonista recorrente. De acordo com a trama, ela domina o continente americano de norte a sul, além de Marte e das luas de Saturno. Porém, a maior parte da narrativa de Alien: Earth é contada sob o ponto de vista da Prodigy, empresa fundada pelo jovem trilionário Boy Kavalier (Samuel Blenkin) e dominadora da Ásia, da Oceania e da África Subsaariana.

As outras empresas são a Threshold, a Lynch e a Dynamic, mas os detalhes sobre elas ainda são limitados.

Essa situação se assemelha a um modelo econômico e político feudal, com as relações de trabalho sendo comparáveis a um regime de servidão. Tanto em Alien: Earth quanto no recente Alien: Romulus há momentos nos quais fica claro que os funcionários dessas empresas não podem simplesmente pedir demissão e procurar outro emprego. Eles são vinculados por contratos de trabalho que podem ser unilateralmente estendidos pelo empregador, que é o que ocorre com a protagonista de Romulus ainda no início do filme.

Dessa forma, fica claro que esse não é um mundo que preza por direitos e liberdades individuais, mas sim pelos interesses e objetivos de corporações privadas. Além das semelhanças com o feudalismo, a outra grande referência histórica dessa situação pode ser a existência da poderosa Companhia Holandesa das Índias Orientais (VOC, do holandês Vereenigde Oost-Indische Compagnie), que ainda é considerada a maior empresa que já existiu em termos de valor de mercado. A diferença é que a VOC era de capital misto, tendo o Estado holandês como um de seus principais acionistas.

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Em Alien: Earth, há também o caso da tripulação da nave espacial Maginot, pertencente à Weyland-Yutani. Os tripulantes são contratados para uma missão de transporte de carga de sessenta e cinco anos de duração. Apesar do envelhecimento deles ser significativamente retardado pelos longos períodos de sono criogênico, é garantido que boa parte de seus entes queridos não estarão vivos quando o serviço finalmente for completado. Nos melhores casos, eles deixarão de ter passado décadas ao lado de seus filhos e netos até reencontrá-los já na terceira idade.

É por isso que um dos tripulantes afirma que a companhia não os paga por sua força de trabalho, mas sim por suas vidas. O que eles estão vendendo ao aceitar um trabalho como esse é a possibilidade de viver uma vida normal e de envelhecer ao lado de seus entes queridos. Não é de se estranhar, portanto, que vários deles já estejam arrependidos ou ressentidos de terem embarcado nessa empreitada.

Isso também explica o fato de que essa tripulação está longe de ser um exemplo de competência e profissionalismo. Os repetidos erros cometidos por eles irritaram muitos espectadores, mas isso faz sentido no contexto da história. Esses não são cientistas e especialistas cuidadosamente selecionados, mas sim as pessoas que estavam dispostas (ou foram pressionadas) a vender suas vidas para a Weyland-Yutani. Dessa forma, o fato de que aceitaram essa missão já é um forte indicativo de que tomar boas decisões não é a especialidade desse grupo de personagens.

Na vida real, os astronautas enviados em missões espaciais são altamente capacitados tanto em habilidades técnicas quanto científicas. Disciplina e autocontrole também são características altamente desejáveis nessas situações. Tudo isso é necessário para aumentar a qualidade de suas decisões e suas chances de sobrevivência tanto em atividades detalhadamente planejadas (como caminhadas espaciais) quanto em situações imprevistas, como ocorreu na missão Apollo 13 e que é imaginado no filme Perdido em Marte.

Um Pesadelo Biológico

Talvez um dos mais arrependidos tripulantes da Maginot seja Morrow (Babou Ceesay), o chefe de segurança da missão. Diante da vida e dos entes queridos que ele deixou para trás, ele se torna obcecado com o sucesso da missão, o que lhe permitiria sentir que os sacrifícios que ele fez valeram à pena. Essa obviamente é uma manifestação de sua dissonância cognitiva, já que ele não quer acreditar que abriu mão de uma vida ao lado de sua família para se dedicar a uma missão fracassada.

Essa missão, que consiste em trazer para a Terra cinco espécies alienígenas coletadas em diversos pontos do espaço, parece ter ido por água abaixo quando a Maginot cai em uma cidade da Prodigy. Porém, Morrow sobrevive e segue implacável em sua missão de entregar os espécimes para a Weyland-Yutani. Completar a missão pela qual ele sacrificou décadas de sua vida parece ser a única coisa que lhe resta.

O único personagem que consegue lidar com as artimanhas utilizadas por Morrow para recuperar os espécimes é Kirsh (Timothy Olyphant), que é um sintético. No universo de Alien, os sintéticos são androides criados pela humanidade para ajudá-la em suas explorações. Morrow, por sua vez, é um ciborgue, ou seja, um ser humano “melhorado” com partes sintéticas. Além de ser capaz de fazer interface direta com computadores, ele possui um braço sintético que possui múltiplas ferramentas, inclusive uma lâmina que pode ser utilizada como arma.

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Nem Kirsh, nem Morrow e nem Boy Kavalier parecem se importar com as possíveis consequências ecológicas da introdução das novas espécies no planeta Terra. Mais interessado nos ganhos financeiros e intelectuais, Kavalier parece acreditar que vai conseguir manter essas espécies contidas em uma ilha de pesquisa da Prodigy. Porém, o mais provável é que eles estão introduzindo espécies invasoras no ecossistema terrestre, com potencial para fazer em nível planetário o mesmo tipo de estrago que esses eventos causaram e causam na vida real.

Um dos exemplos mais notáveis disso são os nossos gatos domésticos, que se tornaram problemas sérios na Austrália, na Nova Zelândia e até mesmo na ilha de Fernando de Noronha.

Perceba que a espécie invasora não precisa ser “maléfica”, mas apenas ter um comportamento instintivamente predatório para o qual a fauna local não está preparada. Isso é muito bem exemplificado no filme Vida, no qual uma espécie alienígena aparentemente inofensiva causa danos inimagináveis ao escapar de sua contenção e começar a consumir matéria orgânica. As séries Planeta dos Abutres e Raised by Wolves também apresentam ótimos exemplares do quão diferentes e ameaçadoras formas de vida alienígenas podem ser.

No caso de Alien: Earth, apenas uma das espécies, o “Olho”, apresenta sinais de inteligência (por parâmetros humanos, é claro). Essa é então a segunda espécie inteligente apresentada no universo de Alien (desconsiderando os crossovers com o universo do Predador), com a primeira sendo os Criadores introduzidos em Prometheus. Os xenomorfos também já deram vários sinais de inteligência ao longo da franquia, especialmente em filmes como Aliens: O Resgate e em Alien: A Ressureição.

Um Conto de Fadas Existencial

Mas os elementos mais filosoficamente interessantes introduzidos em Alien: Earth são os híbridos, corpos sintéticos com mentes humanas. Esse “produto” é idealizado por Kavalier em sua busca por imortalidade, o que lhe permitiria transcender a fragilidade dos corpos humanos e atravessar o tempo como um imortal. Não é por acidente que tanto Kavalier quanto a trama da série tracem inúmeros paralelos entre a história que está se desenrolando e a trama clássica do personagem Peter Pan.

Para quem não conhece ou não se lembra, Peter Pan é um garoto que não envelhece e que é o líder dos Garotos Perdidos na Terra do Nunca. Os Garotos Perdidos são meninos que “caíram do berço” e não foram recuperados por seus pais, indo parar sob a exigente e controladora liderança de Pan. Em uma de suas aventuras no mundo real, Pan conhece a garota Wendy e acaba levando ela e seus irmãos para a Terra do Nunca. Juntos e com a ajuda da pequenina fada Sininho, eles enfrentam o terrível Capitão Gancho, pirata que possui um gancho no lugar de uma das mãos e que é assombrado por um gigante crocodilo que quer lhe devorar.

É por isso que Kavalier nomeia a sua ilha de pesquisa como Terra do Nunca, com ele mesmo se considerando o espirituoso garoto que jamais envelhece. O primeiro híbrido que ele cria é baseado na pequena Marcy Hermit (Florence Bensberg), uma garota de 12 anos de idade que possui uma doença terminal. A ideia é transferir a mente de Marcy para um corpo sintético e permitir que ela viva por vários séculos. É assim que vemos o nascimento da híbrida Wendy (Sydney Chandler), que é basicamente uma criança no corpo de um adulto sintético.

Coincidentemente, seu irmão Joe Hermit (Alex Lawther) também vai parar na Terra do Nunca, assim como acontece com a Wendy da história de Peter Pan.

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Outras crianças gravemente doentes passam pelo mesmo processo que Wendy, pois os cientistas acreditam que suas jovens mentes terão uma maior facilidade para assimilar a transferência para o outro corpo. E assim, os “garotos perdidos” da Terra do Nunca de Kavalier são formados por Wendy, Tootles (Kit Young), Slighly (Adarsh Gourav), Smee (Jonathan Ajayi), Nibs (Lily Newmark) e Curly (Erana James). Na metáfora da série, Morrow e seu braço sintético acabam servindo como Capitão Gancho, enquanto os xenomorfos representariam o terrível crocodilo que ameaça os personagens. Para completar, talvez o Olho seja o que temos como uma espécie de fada Sininho.

A grande pergunta levantada por essa situação parece ser bem simples: Wendy ainda é Marcy? Não há dúvidas de que a mente de Marcy foi transferida para o corpo de Wendy, mas até que ponto isso significa que Marcy e Wendy são a mesma pessoa? Kavalier e seus cientistas trabalham aqui com a ideia de que nossa personalidade e nosso comportamento são definidos estritamente pelas informações que temos armazenadas em nossos cérebros. Dessa forma, nossas identidades e personalidades não são nada mais do que um conjunto de dados que pode ser transferido de uma mídia para outra.

Porém, no mundo real, nós sabemos que nossos comportamentos são definidos por muitos outros fatores além das informações em nossos cérebros. O clima ao nosso redor, nossos hormônios, nossa flora intestinal e muitos outros elementos bioquímicos definem os nossos comportamentos e, consequentemente, as nossas identidades. Esses elementos até podem ser simulados no corpo de Wendy, mas eles seriam facilmente ajustáveis. Em última instância, as memórias e ideias de Marcy não seriam nada mais do que a matéria-prima com a qual a personalidade de Wendy foi construída.

Um Pesadelo Humano

Indo além, há outro fator bem preocupante aqui. Kavalier e os demais falam em “transferir” as mentes das crianças para corpos sintéticos. Isso significaria que as informações foram retiradas dos cérebros humanos e colocadas nos sintéticos. Porém, o mais provável é que as mentes foram “copiadas” para os novos corpos. Dessa forma, a morte de Marcy realmente foi a morte de Marcy; Wendy não é nada mais do que uma sombra e uma continuação de uma pessoa que existiu e que não existe mais. Em outras palavras, Wendy seria uma inteligência artificial baseada nas informações que estavam armazenadas na mente de Marcy.

Alguns dos personagens começam a perceber isso quando se deparam com os túmulos nos quais as crianças originais estão enterradas. Por mais que cópias de suas mentes estão andando por aí em novos corpos, as mortes delas foram reais e definitivas. Wendy existe apenas como Wendy, não como Marcy. E o sonho de imortalidade de Kavalier e de outros trilionários (assim como dos bilionários da vida real) provavelmente seguirá sendo apenas um sonho.

De forma semelhante a séries como Westworld e Black Mirror, Alien: Earth se pergunta o que significa ser uma pessoa em um mundo nos quais pressões econômicas e tecnológicas fazem parte da moldura da nossa existência. E essas pressões não vêm de fontes externas, mas sim da vontade humana de exercer controle e dominação sobre seus pares. Um perfeito exemplo disso é Boy Kavalier, um trilionário que se considera superior ao restante da humanidade e que está obcecado com a busca pela própria imortalidade, sem se importar com a grande quantidade de vidas humanas sacrificadas nesse processo. Apesar de seus sonhos de grandeza, ele acaba sendo a pessoa mais medíocre e ordinária da trama.

Além de todos esses temas e questionamentos, a série ainda capricha em termos de ação e de terror. As novas espécies permitem que a trama recrie algumas das melhores experiências dos filmes anteriores sem apresentar uma mera repetição das ações dos xenomorfos. Com a ajuda de inusitadas escolhas de trilha sonora e de uma assustadora ovelha, Noah Hawley consegue colocar um sorriso no rosto dos fãs da franquia enquanto aborda diversos temas sociais, ecológicos e existenciais.