Crítica: Indústria Americana
American Factory, EUA, 2019
Contraste mostrado em documentário reflete não apenas diferenças culturais, mas também temporais entre EUA e China
★★★★☆
O documentário Indústria Americana poderia ser um inspirador conto de integração e aceitação entre as culturas chinesa e norte-americana. Porém, o que os cineastas Steven Bognar e Julia Reichert encontram ao percorrem o chão de uma fábrica chinesa nos EUA é simultaneamente previsível e surpreendente: enquanto o choque entre patrões e empregados ocorre como o esperado, as incompatibilidades entre os operários chineses e os norte-americanos expõem algumas das dimensões psicológicas e, até mesmo, filosóficas da relação do ser humano com o trabalho.

Por algum motivo, o bilionário chinês Cho Tak Wong esperava níveis semelhantes de “dedicação” da força de trabalho norte-americana. Porém, mesmo desesperados com a situação econômica local e extasiados com as oportunidades abertas com a nova fábrica, os trabalhadores do estado de Ohio não estão dispostos a arriscarem a própria segurança física e mental para produzirem vidros para carros. Para eles, o trabalho é uma parte importante da vida e fonte de renda e dignidade, mas não a ponto de ser o elemento central e razão de suas existências.
Para os operários chineses, isso torna os norte-americanos lentos e preguiçosos. Orgulhosos dos resultados gerados por seu trabalho extenuante, é compreensível que eles tentem convencer a si próprios de que estão fazendo algo grande, importante e repleto de significado. Isso é incentivado pela propaganda corporativa, que inclui surreais canções e performances artísticas sobre produtividade e transformação lean.
De repente, fica muito claro o porque do Partido Comunista Chinês controlar tão severamente o acesso à informação no país. Se tal força de trabalho conhecer as conquistas trabalhistas alcançadas no resto do mundo nos últimos cem anos, os chefes de Estado teriam, de uma forma ou de outra, uma revolução em mãos.

Nem sempre era uma escolha, mas uma questão de sobrevivência. Nos primeiros anos da Revolução Industrial, crianças órfãs eram legalmente obrigadas a trabalhar em fábricas. É uma atividade que com frequência envolve coerção. Ainda hoje, em lugares como a China, o trabalho fabril pode ajudar um jovem a escapar da pobreza e da vida rural, mas a fábrica é um ambiente autocrático, quase militarizado, com regras das quais não se pode discordar.
E é daí que nascem esses “workaholics” chineses. Na seguinte definição, cunhada pela psicóloga Barbara Killinger, é possível perceber que um típico workaholic tem as características necessárias para perder a perspectiva de sua situação e se tornar facilmente manipulável:
Um workaholic é um indivíduo obcecado com o trabalho, que vai se tornando emocionalmente deficiente e viciado em poder e controle, com uma vontade compulsiva de obter aprovação e reconhecimento público de sucesso. Esses motivados homens e mulheres vivem em uma existência cheia de adrenalina, correndo do plano A para o B, limitadamente fixados em algum ambicioso objetivo ou realização. Mais cedo ou mais tarde, nada ou ninguém mais importa.
Um dos principais méritos de Indústria Americana é mostrar os dramas enfrentados tanto por operários chineses quanto pelos norte-americanos, realçando as similaridades e diferenças entre esses dois grupos, que dificilmente são representados na mídia em geral. Esse é um dos motivos pelos quais o casal Barack e Michelle Obama escolheu esse documentário como primeiro trabalho a ser apadrinhado por sua produtora, a Higher Ground Productions. Junto com o lançamento do filme, a Netflix lançou um vídeo de 10 minutos no qual os Obama conversam com os diretores sobre os méritos da produção.
Indústria Americana oferece uma visão ampla e genuína sobre um bem-sucedido encontro cultural em meio a uma mal-sucedida integração laboral. É como se uma força de trabalho do Século XXI tivesse que ser treinada por trabalhadores do Século XIX, colocando os norte-americanos sob a pressão tanto de chefes quanto de colegas estrangeiros. Já os chineses sofrem tanto com a pressão de superiores quanto com a pressão psicológica causada pela narrativa do trabalho como razão de existir.







