Crítica: Elle

Elle, França/Alemanha/Bélgica, 2016



Drama aborda de forma provocante temas como sociopatia e violência sexual

★★★★☆


Em Elle, após ser atacada e violentada dentro de sua própria casa, a empresária Michèle Leblanc (Isabelle Huppert) se levanta, varre os cacos dos objetos quebrados, joga no lixo as roupas que estava usando e toma um banho relaxante. Ela não chama nem a polícia e nem algum familiar ou amigo. Mesmo abalada, ela não derrama uma única lagrima durante ou após o ocorrido. Inicialmente, o espectador acha que esse intrigante estudo de personagem é sobre uma mulher forte e independente, que não titubeia diante das várias situações difíceis na qual se encontra, mas no decorrer da narrativa percebe-se que há algo mais sombrio no passado e no presente de Leblanc.

elle1Após o ataque, ela segue sua rotina como se nada tivesse acontecido, e casualmente revela o incidente para as pessoas mais próximas a ela, que são seu ex-marido, sua sócia e o esposo dessa última. Porém, o homem que a atacou passa a lhe enviar mensagens obscenas, o que a leva a perceber que o atacante é uma pessoa próxima e torna todos os homens em sua vida suspeitos.

Nesse momento, o filme parece caminhar na direção de um típico mistério ou filme de vingança, com a protagonista chegando a comprar um spray de pimenta e, impulsivamente, uma machadinha. Um outro acontecimento a leva a suspeitar que o atacante é funcionário de sua própria empresa, que é uma produtora de jogos de vídeo game pornográficos. Mesmo sendo chefe, ela ainda tem que lidar com os típicos egos e machismo da indústria de desenvolvimento de software, com os quais ela lida de forma bruta e sem sutileza.

Esse e outros aspectos da vida de Leblanc já dariam um ótimo filme, mesmo sem o arco sobre violência sexual. Além da empresa, ela tem que lidar com o filho preguiçoso, que engravida sua controladora e instável namorada; seu ex-marido, que tem uma jovem e inteligente companheira, o que a deixa com ciúmes; sua mãe, que está em um “relacionamento” com um gigolô e já pensa em se casar com ele. Ela própria está tendo um caso com o marido de sua sócia, o que não a impede de mostrar bastante interesse em seu charmoso vizinho, que é casado com uma dedicada moça católica.

É enquanto vamos sendo apresentados a esses outros personagens que vamos percebendo o lado mais narcisista e manipulador de Leblanc, que, com as piores intenções, convida todos eles para uma ceia de Natal em sua casa. É nesse momento também que o filme perde sua veia de mistério e ganha fortes pinceladas de comédia de costumes com bastante (e, na maioria das vezes, sutil) humor negro.

Além de tudo isso, Leblanc também tem que lidar com uma indesejável atenção popular e midiática. Quando ela ainda era uma criança, seu pai cometeu crimes monstruosos na vizinhança onde moravam e ela e sua mãe ainda são hostilizadas em lugares públicos devido a esses acontecimentos. Tangencialmente envolvida nas ações do pai, não fica claro se as tendências sociopáticas de Leblanc começaram a se manifestar a partir daquele ponto ou se ela já as tinha. O fato é que desde muito pequena ela teve que se virar para lidar com o que há de pior na humanidade.

Quando ela finalmente identifica seu agressor, ao invés de denunciá-lo ou fazer justiça com as próprias mãos, ela apenas o insere no rol de personagens com quem tem uma relação desigual de poder. E é no aspecto físico desse relacionamento que o filme toca em algumas questões sensíveis da sexualidade humana, o que vem causando polêmica dentre críticos e espectadores.

Leblanc demostra ter desenvolvido uma certa curiosidade pelo criminoso, o que a faz inseri-lo novamente em sua vida. E ela o faz de forma a ficar menos pesado em sua consciência, ligando pra ele depois de tentar ligar para vários de seus amigos e familiares em uma situação de emergência (na qual ela ainda poderia ter ligado para a polícia ou serviços de resgate). Eles desenvolvem uma relação pervertida na qual não fica clara a linha entre consenso e abuso, mas, no fim e independente disso, fica claro quem está no comando.

elle2O roteiro pode parecer exagerado, mas a atuação de Isabelle Huppert mantém a coisa toda em um ótimo tom de sobriedade. Sua Michèle Leblanc é sutil e contida, e vai reagindo com uma naturalidade hipnotizante (e, às vezes, cômica) às situações. O espectador consegue perceber que a personagem está no limite da raiva mesmo quando sua expressão é sorridente e as palavras educadas. Nas mãos de uma atriz menos experiente, Leblanc poderia ter se tornado uma típica e unidimensional vilã de novela, mas aqui temos uma atuação que em uma mesma cena consegue explicitar o conflito entre angústia e narcisismo no qual a personagem se encontra.

Elle é um show que pertence a Isabelle Huppert e ela o domina perfeitamente, fazendo com que simpatizemos com essa personagem mesmo quando ela está em seu pior comportamento. A narrativa mantém o espectador curioso e entretido enquanto causa as polêmicas ou explora os limites conforme pretendia, o que, junto a atuação de Isabelle Huppert, tornam essa uma obra memorável.

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