Crítica: Ao Cair da Noite

It Comes At Night, EUA, 2017



Terror psicológico investe pesado na paranoia

★★★☆☆


Ao Cair da Noite, segundo longa metragem do diretor Trey Edward Shults, é mais um exemplar da recente leva de filmes de terror psicológico que tem chegado aos cinemas, na qual se destacam A Bruxa e O Babadook, ou mesmo o suspense O Convite. Apesar de funcionar tão bem quanto esses, o longa de Schultz acaba sendo mais difícil de digerir devido a sua maior proximidade com o drama do que com os gêneros do terror e suspense. O filme fica mais próximo do longa de estreia do diretor, Krisha, um drama que utiliza elementos de suspense para contar uma história tão intensa quanto trágica.

Na cena inicial de Ao Cair da Noite, Sarah (Carmen Ejogo) está se despedindo de seu pai, Bud (David Pendleton), que está prestes a ser eutanasiado pelo seu genro Paul (Joel Edgerton) e neto Travis (Kelvin Harrison Jr.). Após o feito, o núcleo familiar composto por Sarah, Paul e Travis segue sua rotina na casa que ocupam no meio da floresta. A família está tentando se isolar da misteriosa doença que começou a dizimar as pessoas nas cidades e que havia contaminado Bud. Depois que a casa é invadida no meio da noite, Paul decide receber a família do invasor Will (Christopher Abbott), que é casado com Kim (Riley Keough) e pai de Andrew (Griffin Robert Faulkner), o que muda significativamente a rotina do lar.

ao cair da noite 2O grande trunfo de Ao Cair da Noite é seu constante clima de suspense. Durante toda a narrativa, há uma ameaçadora sensação de que algo terrível irá acontecer. Mais que isso, não se sabe ao certo de onde virá essa ameaça. Viria da família de Will? Ou seria Travis e sua aparente instabilidade de adolescente responsáveis pelo desfazimento do sensível equilíbrio existente na casa? Ou seriam eles finalmente alcançados por seja lá o que está acontecendo no mundo exterior? Ao fim, um evento que envolve essas três ameaças acaba revelando os verdadeiros vilões da trama: o medo e a paranoia.

Nesse sentido, Ao Cair da Noite funciona como um estudo do que as pessoas são capazes de fazer quando deixam o medo, aliado a um irracional e implacável instinto de auto-preservação, pautar suas ações. Indo além, um dos grandes questionamentos deixados pela história é: até que ponto vale a pena sobreviver se a sua sobrevivência depende da realização de atos “monstruosos”? E que vida você pode ter quando vive sob essas condições? Será que realmente vale a pena vivê-la?

Esse sentimento de auto-preservação pode ser considerado irracional a partir do momento que leva as pessoas a fazerem coisas que acabam diminuindo suas próprias chances de sobrevivência. Nenhum dos personagens apresenta grande curiosidade pelo que está acontecendo nos centros urbanos, seja para entender o ocorrido, seja para verificar se a misteriosa doença foi controlada. A eles, basta sobreviver dia após dia. Uma eventual escassez poderia forçá-los a se aventurar no mundo externo, mas, até esse dia chegar, eles seguem uma estrita rotina que preza, acima de tudo, pela segurança e pela economia de recursos.

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Com uma narrativa lenta e sem oferecer respostas fáceis, Ao Cair da Noite vai decepcionar os fãs de terror convencional na mesma proporção em que vai agradar os fãs de terror psicológico e drama familiar. Algumas das pontas que o filme deixa soltas são tão ambíguas que fica difícil de diferenciá-las de falhas no roteiro, o que pode ser ainda mais frustrante para o espectador. Por outro lado, isso permite que a narrativa foque na construção de clima e não perca tempo explicando detalhes e procurando culpados. Fica claro que o diretor não está interessado em explicar a situação na qual os personagens se encontram, mas sim em explorar como aquela situação afeta o comportamento deles. Em outras palavras, os elementos concretos de terror jamais aparecem em tela, mas apenas as consequências deles sobre os sobreviventes.

Comentários com Spoilers

O fato de que Ao Cair da Noite não se preocupa em resolver os mistérios levantados dá ao espectador a liberdade de especular e inferir sobre certos eventos, o que faremos nos parágrafos a seguir.

O primeiro grande mistério apresentado em Ao Cair da Noite é a natureza da doença que afeta a população. Ainda que não seja explicitado pela narrativa, a impressão que fica é que estamos lidando com uma infecção zumbi. O espectador dificilmente ficaria chocado se, do nada, uma horda de zumbis saísse da floresta e começasse a atacar a casa. Mas esse não é “aquele” tipo de filme. Essa tese se sustenta tanto no aspecto quando na respiração pesada dos doentes, além da natureza misteriosa de seja lá o que for que atacou o cachorro da família na floresta.

Outro ponto de mistério é sobre o passado (recente ou não) de Will, que em determinado ponto se contradiz sobre ter um irmão. O que podemos inferir aqui é que os dois homens que Paul mata quando estão a caminho da casa de Will são seu irmão e seu pai. Will finge não conhecê-los para não perder a ajuda de Paul, que certamente não confiaria nele sabendo que havia matado dois de seus entes queridos após ser atacado por eles. Paul, com certeza, acharia que Will o levou direto para uma emboscada, o que também pode ser verdade. Mas isso tudo também pode ser mentira. Note como, ao deixar essas questões sem resposta, o filme arrasta o espectador para o mesmo nível de paranoia compartilhado por Paul e Sarah.

Essa possibilidade também mostra que talvez Will e Kim também estão dispostos a ir até as últimas consequências para garantir a sobrevivência deles e do filho, aceitando abrigo na casa do homem que matou seus familiares. Mais uma vez, isso também é apenas especulação.

Mas o grande mistério de Ao Cair da Noite não passaria de um detalhe em outros filmes de terror: quem abriu a porta vermelha? Veja que nada realmente catastrófico aconteceu devido a porta estar aberta, mas é a paranoia e a desconfiança gerada por esse pequeno detalhe que dá início à sequência de acontecimentos que culmina nos trágicos assassinatos.

Os principais suspeitos de abrirem a porta são Travis e Andrew, mas, a priori, não faz sentido ter sido nenhum dois. Mais cedo no filme, Paul estabeleceu que a porta fica sempre trancada e que as chaves ficam sempre com ele e com Sarah. Isso significa que apenas um deles poderia ter aberto a porta, certo? Talvez. Por outro lado, Travis não parece ter problemas para se locomover pela casa sem ser percebido, e poderia ter entrado no quarto dos pais e pego chave. Mas qual seria a sua motivação? Seu interesse sexual por Kim? Pouco provável. O fato é que, diante dessas considerações, o pequeno Andrew é o que estaria menos “equipado” para abrir aquela porta.

Uma hipótese mais “ousada” seria a de que Travis sofre de algum distúrbio mental que causa comportamento dissociativo, o que pode ter sido desencadeado quando ele presenciou o avô sendo morto. Ou seja, para lidar com o trauma, Travis desenvolveu uma personalidade alternativa que faz certas coisas sem que ele perceba, como abrir a porta vermelha. Um ponto que sustenta isso é como a narrativa mostra que seus sonhos estavam ficando cada vez mais realistas e perturbadores. Isso pode até ser elaborado demais, mas não deixa de ser uma possibilidade.

Uma explicação mais direta e simples seria a de que Paul ou Sarah esqueceram a porta destrancada e Andrew apenas aproveitou o deslize enquanto caminhava pela casa. Ele pode ter entrado em contato com o cachorro ferido e ter sido contaminado, mas o filme também não nos dá a certeza de sua contaminação. Também é pouco provável que os paranoicos Paul e Sarah tenham esquecido a porta aberta. Acredito que pelo menos um deles iria conferir se a porta estava fechada antes de irem dormir. Mais uma vez, apenas especulação.

O fato é que, seja por ter entrado em contato direto com o cachorro enquanto em “transe” ou por ter entrado em contato com Andrew, Travis com certeza foi contaminado. Isso leva seus pais a recorrem a mesma estratégia usada com Bud: eutanásia. A cena final mostra o quão solitários Paul e Sarah ficam depois de terem matado Bud, Will e sua família e, por fim, seu próprio filho, Travis. Independente da doença que os espreita, a paranoia de Paul e Sarah é a força mais destruidora apresentada em Ao Cair da Noite.

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