Vendendo Tons de Pornografia


Depois de assistir O Lobo de Wall Street na sexta, Ninfomaníaca – Volume I no sábado e ler O Caderno Rosa de Lori Lamby no domingo, percebi que há uma combinação de temas comum aos três: marketing e sexo. O “genial” vendedor de “O Lobo de Wall Street” constrói sua fortuna atraindo e enganando seus clientes numa escala assustadora, enquanto Lars von Trier e Hilda Hilst utilizam o sexo para atrair consumidores que jamais se interessariam por suas artísticas e profundas obras.

Vendedores
Dirigido por Martin Scorcese e baseado na história real de Jordan Belfort (relatada em um livro escrito pelo próprio), O Lobo de Wall Street é fantasticamente divertido e consegue manter por três horas o ritmo alucinante de seu primeiro trailer. São três horas de sexo, drogas, festas, humor negro, fraude financeira, orgias, mais drogas, lavagem de dinheiro, álcool, carros de luxo, prostitutas, evasão de divisas e muito mais drogas. Tudo isso é mostrado sem o menor pudor ou julgamento moral, deixando-os a cargo do público (inclusive, não entendi porque sua classificação etária é de 16 anos, e não 18).

A razão do sucesso de Belfort é sua fantástica habilidade como vendedor, potencializada por sua gigantesca ganância e total falta de escrúpulos. Por telefone, ele convence inúmeros trabalhadores comuns a “investirem” milhares de dólares de suas economias em ações podres, interessado apenas na gorda comissão que recebe pelas vendas. Sua ascensão ocorre quando ele monta sua própria firma de investimentos e ensina aos seus funcionários suas táticas mais implacáveis. É tudo uma questão de convencer o cliente de que ele precisa daquele produto e de que seria uma tolice não aproveitar aquela oportunidade. Isso me lembra a incrível habilidade de Steve Jobs ao se colocar como guru e convencer as pessoas de que elas precisavam dos dispositíveis móveis da Apple, criando (ou, supostamente, revelando) uma demanda que não existia. É possível também traçar um paralelo entre a ganância irracional de Belfort e as causas da crise econômica de 2008, enraizadas na concessão de financiamentos imobiliários para pessoas que não ofereciam garantias e não tinham a menor condição de manter os pagamentos. Uma vez que a crise estava prestes a estourar, instituições financeiras que estavam atoladas em títulos podres começaram a vendê-los para seus clientes como se fossem papéis normais, diminuindo as próprias perdas e deixando boa parte do prejuízo nas mãos dos desavisados. Na mesma época, foi revelado que uma renomada firma de investimentos de Nova York, fundada por Bernard Madoff, estava na realidade operando um esquema Ponzi, e grandes clientes do mundo inteiro perderam bilhões de dólares quando a fraude foi desmascarada.

Muitos outros paralelos podem ser traçados entre a história de Belfort e práticas que ainda são comuns hoje em dia, como, no Brasil, os supostos esquemas de pirâmide que se escondem por trás da cortina do marketing multinível. No filme, o primeiro chefe de Belfort lhe ensina que seu trabalho é simplesmente “tirar o dinheiro do bolso do cliente e colocá-lo em seu bolso.” Belfort complementa dizendo que é melhor ainda se eles fizerem isso e também ajudarem o cliente a ganhar dinheiro, é lógico. O excêntrico chefe discorda. Sua explicação é que essas pessoas vão querer mais, e elas vão tornar a investir os ganhos que tiveram, com o intuito de ganhar ainda mais. Se há alguma mensagem transmitida pelo filme, é de que a maioria das pessoas também perderiam o controle e, cegas pela ganância, cometeriam os mesmos crimes que esses “mestres do universo”. Mesmo depois que Belfort perde sua fortuna e é preso, o incorruptível agente do FBI que efetuou sua prisão o inveja por alguns instantes, enquanto volta para casa de metrô, cercado por pessoas comuns que olham para o vazio enquanto esperam o veículo chegar ao seu destino.

O Sexo e o Errado
No primeiro capítulo de Ninfomaníaca – Volume I, o personagem para o qual a protagonista Joe conta suas estórias, Seligman, traça um interessante (e debochado) paralelo entre a arte da pesca e as técnicas de sedução utilizadas por ela. A análise da topografia do rio, os tipos de iscas utilizadas, o comportamento dos peixes, etc. Ainda mais interessante é o fato de que esse paralelo também pode ser traçado em relação à estratégia de divulgação do próprio filme. Quando, ainda em Cannes divulgando Melancolia, Lars von Trier anunciou que seu próximo filme seria um pornô, a grande maioria das pessoas achou que ele estava brincando, que aquilo era apenas uma provocação. Não era, e em pouco tempo teve início uma das maiores campanhas publicitárias que já se viu para um chamado “filme de arte”. A promessa de cenas de sexo hardcore em um filme com conhecidos rostos de Hollywood, ainda que utilizando atores pornô como dublês de corpo, chamou a atenção. Cada atriz ou ator anunciado no elenco gerava um burburinho. Em seguida, começaram a sair as imagens promocionais e os posters temáticos de cada personagem. Então os trailers e clipes, alguns com cenas de sexo explícito. A música tema é um metal pesado da banda Rammstein. E, considerando a quantidade de pessoas na sala quando o assisti, a estratégia está dando certo. Um dos maiores méritos dessa campanha sempre será o de colocar nas salas de exibição muita gente que jamais assistiria um cerebral “filme de arte”. Os peixes estão mordendo a isca.

Tinha receio de que o filme fosse apenas hardcore, feito para chocar e pronto. Não é o caso. “Ninfomaníaca – Volume I” é acima de tudo um estudo de personagem. Além disso, com a ajuda de Seligman, analisa-se a dinâmica das relações pautadas pelo sexo, o papel do amor e a organização que uma ninfomaníaca como Joe precisa ter para fazer sexo com até 10 homens por noite. Muitos paralelos são traçados entre sua vida sexual e elementos de arte e ciência, como a sequência de Fibonacci e a música de Bach. Veja, a música tema utilizada na divulgação é um metal pesado, enquanto a música levada em consideração no filme em si é Bach, dentre outros elementos de música erudita. A essa altura, é possível encontrar inúmeras análises desses e outros detalhes dessa primeira parte, e, para não repeti-las aqui, irei apenas recomendar essas duas. No geral, gostei bastante dessa primeira parte, mas o veredicto final só pode ser dado quando assistir o resto do filme, o Volume 2. O corte que os divide é abrupto e deixa um cliffhanger interessante, e mal posso esperar para ver a conclusão.

Oferta e Demanda
Mega SPOILER aqui.

Em O Caderno Rosa de Lori Lamby, uma menina de 8 anos relata os atos sexuais à qual é submetida ao ser explorada pelos pais. E não é uma triste história dramática, é pra ser pornográfico mesmo. Mas o que levaria uma das maiores escritoras brasileiras do século XX à escrever um livro com uma premissa dessas? Permita-me apresentar-lhes Hilda Hilst.

Lori Lamby é prostituída pela própria mãe e relata em seu caderno rosa os encontros com os clientes. Ela gosta dos encontros e relata inocentemente o prazer que sente com as coisas estranhas que os homens lhe fazem, narrando-os grafica e detalhadamente. Além disso, ela também relata os problemas que se passam em casa. O pai é um renomado escritor, mas já não consegue emplacar livros de sucesso, e a família passa por uma crise financeira. Ele sofre com as pressões do seu editor, e depois com as pressões da esposa, que engrossa o coro ao insistir que ele deve escrever o que o editor está pedindo. O editor havia explicado que os livros dele não vendem mais, e que ele deveria tentar escrever umas “bandalheiras”. Lori não sabe o que isso quer dizer, mas o que o editor está dizendo é que o pai deveria escrever uns romances picantes, talvez pornográficos, pois isso é o que está em alta no mercado. Ora, temos aqui a metalinguagem de Hilda Hilst: o pai escritor representa ela mesma, escritora que provavelmente é forçada a seguir as tendências de mercado e escrever algo mais “picante”. Dessa forma, “O Caderno Rosa de Lori Lamby” é uma zombaria em relação à seu editor e ao mercado; é como se ela dissesse: “Ah, então vocês querem um romance pornográfico? Então toma esse romance pornográfico aqui!”, e o recheia com atos de pedofilia descritos em linguajar infantil pela própria vítima.

Esse é o primeiro livro da trilogia obscena de Hilda Hilst, completada por “Contos D’escárnio. Textos Grotescos” e “Cartas de um Sedutor”. Já li esse último e ele consegue ser tão chocante quanto “O Caderno Rosa de Lori Lamby”. Quando questionada sobre eles, Hilst respondia ironicamente que estava tentando popularizar sua obra. Funciona, assim como a isca funciona para fisgar um peixe. Como na obra de Trier, temos o sexo sendo usado para vender arte. Nesses livros, o leitor não é apresentado apenas às obscenidades gratuitas, mas também ao estilo da prosa hilstiana e seu fluxo de pensamento. Além de “Cartas de um Sedutor”, já li uns 4 ou 5 exemplares de sua obra mais séria, e são fantásticos. Não há narrativa dos fatos, mas apenas um fluxo constante dos pensamentos ou conversas de um ou mais personagens. São intrinsecamente introspectivos.

Mas vamos para o final razoavelmente feliz da história de Lori Lamby. Em um surpreendente plot twist, é revelado que os acontecimentos registrados no caderno não ocorreram, mas eram apenas uma ficção criada pela garota de 8 anos numa tentativa de ajudar seu pai a escrever as “bandalheiras” que precisava. Ela explica em uma carta aos pais como teve acesso ao material pornográfico que o pai estava utilizando como inspiração, e o utilizou para escrever as histórias obscenas de criação própria. Talvez Lori Lamby seja apenas o nome da personagem criada por ela. A carta é escrita a pedido dos tios que estão cuidando dela, pois os pais estão afastados em uma “casa pra repouso”. Aparentemente, eles sofreram um colapso nervoso ao encontrar o caderninho da filha. Detalhe: o editor gostou do caderno rosa.

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