Succession: Nenhuma Pessoa Real Envolvida
Se demorei para assistir a Succession foi porque, à primeira vista, a série me pareceu apenas mais um drama sobre pessoas ricas e burras sendo burras e ricas. Agora que maratonei as duas primeiras temporadas, sei que não estava completamente errado, mas ela oferece muito mais do que isso. Para ser mais exato, ela é uma versão mais trabalhada e refinada de algumas das minhas séries favoritas dos últimos dez anos.
O formato dos episódios, o trabalho de câmera, a improvisação e o criativo uso de insultos me pareceram bem familiares. Então não foi nenhuma surpresa quando vi que o criador de Succession, Jesse Armstrong, foi um dos escritores das três primeiras temporadas de The Thick of It, série britânica criada pelo satirista Armando Iannucci e que teve quatro temporadas entre 2005 e 2012. Armstrong também foi um dos escritores dos dois especiais de uma hora (lançados em 2007) e do filme de 2009 (Conversa Truncada, dirigido por Iannucci) baseados na série.
Com base na abordagem aprimorada em The Thick of It, Iannucci foi para os Estados Unidos e criou Veep, aclamada comédia da HBO que recebeu dezessete Emmy Awards ao longo de suas sete temporadas. Armstrong foi um dos escritores da temporada de estreia, assim como Tony Roche, outro escritor em comum entre as três séries (Roche colaborou novamente com Iannucci em Avenue 5, comédia da HBO lançada no início de 2020).
Uma das principais características que Succession herdou das duas séries citadas é a estrutura dos episódios. Enquanto a maioria das séries de drama atuais causam a impressão de que a temporada é um grande filme de oito ou dez horas, a estrutura aqui causa a impressão de termos visto dez filmes individuais, cada um com suas próprias complicações e resoluções, ainda que sigam um arco dramático global. Isso é realçado pelo fato de que a maioria dos episódios é confinada em locais ou situações específicas.
No caso de Succession, há o episódio na Hungria, o episódio na Escócia, o episódio em Londres, o episódio no iate, etc. Em Veep, há o episódio em Helsinque, o episódio do dia da eleição, o episódio em Teerã, dentre outros. Um tipo de episódio que as três séries têm em comum é o do testemunho para legisladores. Em The Thick of It, foi o penúltimo episódio da série; em Veep, foi o penúltimo da quarta temporada; e em Succession, foi o penúltimo episódio da segunda.
O que Succession faz com o formato é alterar a proporção dos ingredientes. Se The Thick of It e Veep são focadas na comédia, com ocasionais momentos dramáticos, Succession é focada no drama, mas deixando a comédia fluir naturalmente nas situações apresentadas. Enquanto as comédias anteriores tentavam exagerar o mundo real, o drama da família Roy tenta fazer uma representação mais fiel da realidade, o que inclui um alto grau da comédia da vida real. E é aí que o talento do produtor executivo Adam McKay, diretor de filmes como A Grande Aposta e Vice (crítica aqui), faz a diferença, contribuindo com sua experiência em realçar o humor em dramatizações de histórias verídicas.
Assim como as outras duas séries, Succession inspira sua trama em pessoas e situações reais. Os Roy são claramente inspirados na família do magnata australiano Rupert Murdoch e o império formado pela News Corporation, que inclui o canal de notícias Fox News (equivalente à ATN da série). O escândalo no setor de cruzeiros que assombra os personagens é equivalente ao escândalo dos grampos ilegais realizados pelo jornal News of the World, que resultou no fechamento do jornal e no “sacrifício de sangue” da editora Rebekah Brooks, dentre outras consequências.
Mas a família Murdoch não é a única inspiração. Connor Roy (Alan Ruck) é claramente inspirado em Donald Trump, o filho idiota que não tem senso do ridículo e que pretende se tornar presidente. Assim como Connor, Trump sempre teve baixa credibilidade dentro da família mas uma considerável presença na mídia, conquistando um perfil público muito diferente das suas reais capacidades. E assim como Trump, Connor consegue conquistar a simpatia de uma parte dos conservadores, os chamados con-heads, claramente baseados nos alt-right do mundo real.
Como se isso não fosse bastante, o livro que uma sobrinha de Trump está tentando publicar faz revelações que muito se assemelham a vários pontos da trama de Succession.
Mas a atração principal da série é o universo paralelo no qual seus personagens vivem. A riqueza e opulência que fazem parte de suas rotinas parecem existir em um planeta distante, onde não há centenas de milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza e não há bilhões lutando diariamente para não ir parar abaixo dela. É um mundo plácido e tranquilo, muito acima da luta pela sobrevivência que faz parte da rotina de uma boa parte da população mundial.
Porém, os Roy também fazem parte dessa humanidade. Eles podem não se preocupar com sobrevivência, mas ainda possuem algumas necessidades humanas que o dinheiro não pode comprar. Os três filhos no centro da trama precisam travar ferozes batalhas em nome da aprovação do patriarca Logan Roy (Brian Cox), pois no fim das contas eles também só querem se sentir validados. O sucesso na política ou nos negócios é a forma que possuem de buscar essa aprovação, de mostrar que possuem as características que o pai admira e respeita. Ou seja, de mostrar que são dignos de serem amados.
E enquanto é fácil julgá-los pela corrupção e impunidade que conquistam graças ao dinheiro, é difícil imaginar pessoas puras e honestas enquanto detentoras de tanto poder. Não digo isso apenas pelo fato de ser muito difícil acumular tanta riqueza de forma 100% ética, mas também porque esse tipo de poder muda as pessoas, expondo facetas de suas personalidades que não teriam a oportunidade de vir à tona se elas passassem a maior parte do tempo trabalhando ou preocupadas com questões financeiras.
Se, da noite pro dia, colocássemos uma família pobre ou de classe média na mesma situação que os Roy, o quão diferente ela seria? Quanto tempo levaria para ela se tornar algo muito semelhante ao que vemos em Succession? O quão diferentes seriam os filhos que já nasceriam com acesso àquela fortuna e que jamais tiveram a necessidade de se preocupar com o preço de um litro de leite? Quanto tempo levaria para eles se sentirem superiores? Quanto tempo até que considerem como “pessoas reais” apenas aquelas com quem eles precisam se preocupar juridicamente?
O dinheiro não traz felicidade, mas ele pode ser muito útil para financiar nossas ilusões de grandeza. Ou, pelo menos, para sermos infelizes como os Roy: em mansões, iates e jatinhos de luxo.