Crítica: As Faces da Marca (LuLaRich)

LuLaRich, EUA, 2021



Minissérie As Faces da Marca mostra as nefastas consequências de um modelo de negócio insustentável e predatório

★★★☆☆


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A minissérie documental As Faces da Marca expõe o que pode acontecer quando um negócio perfeitamente legal de venda de roupas é gerenciado por completos amadores que não se preocupam com os limites éticos de sua atuação. A LuLaRoe poderia ter se tornado um moderado e saudável caso de sucesso, mas agora está no centro desse documentário como um exemplo de como o marketing multinível pode rapidamente sair de controle e prejudicar as vidas dos participantes do esquema. Em determinado ponto, fica claro que a cultura organizacional da empresa era tão tóxica que incluía práticas características de seitas abusivas.

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O fato de que os fundadores Deanne Brady e Mark Stidham estavam dispostos a serem entrevistados pelos documentaristas mostra o quanto eles ainda não entenderam o lado antiético da LuLaRoe. Pela mentalidade de empreendedorismo que seguem, eles não possuem nenhuma responsabilidade sobre o fracasso de muitos dos representantes (em sua maioria, donas de casa) que faziam parte da empresa. Se a pessoa foi a falência porque não conseguiu vender produtos o suficiente, a culpa é apenas dela. Eles jamais admitem os muitos problemas na qualidade dos produtos e o incentivo irracional e insustentável ao recrutamento de cada vez mais pessoas como vendedoras.

De acordo com os próprios, eles jamais pretenderam criar uma empresa de marketing multinível. Eles apenas perceberam que seria uma boa ideia recrutar os próprios clientes como vendedores e oferecer-lhes comissões sobre as vendas. Porém, não demorou muito para que as primeiras pessoas que entraram no esquema passassem a receber mais dinheiro como bônus de recrutamento do que como comissões de venda. E assim, a verdadeira natureza do negócio se tornou o recrutamento de vendedores, e não a venda dos produtos, resultando em uma pirâmide financeira.

Mesmo se o bônus de recrutamento não existisse, o negócio ainda seria insustentável, pois, a partir de determinado ponto, existiriam mais vendedores do que compradores no mercado. Por exemplo, se um vendedor recruta 10 pessoas e cada uma delas recruta mais 10, isso já dá um total de 111 vendedores na mesma região. Com apenas mais três camadas de recrutamento, esse total já passaria dos 100.000. O esquema poderia funcionar por algum tempo, mas no momento do colapso apenas as pessoas que estão nas camadas mais altas da pirâmide não sofreriam prejuízo.

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Sob esse modelo, a LuLaRoe cresceu vertiginosamente em um curto espaço de tempo, exigindo líderes capazes de gerir uma empresa de faturamento multimilionário. Porém, a inexperiência de Brady e Stidham mais uma vez apareceu quando eles resolveram colocar apenas familiares nas posições de liderança. Sem referências de profissionalismo e governança corporativa, eles foram improvisando até não dar mais. Talvez, mesmo se não fosse um esquema de pirâmide, a empresa passaria por dificuldades devido à falta de liderança qualificada.

Um ambiente como esse, onde os aspectos pessoais não estão separados dos profissionais, é propício para a adoção de práticas abusivas. As Faces da Marca mostra que o típico discurso corporativo de “somos todos uma grande família” e de “vestir a camisa da empresa” se torna problemático quando os chefes passam a recomendar mudanças na vida pessoal dos colaboradores, a exigir fidelidade total de alguns deles e até a pregar sobre suas crenças religiosas. Ainda assim (e apesar de algumas semelhanças), a situação mostrada está longe do nível de disfunção da igreja retratada no documentário The Way Down (crítica aqui), que se tornou uma completa seita depois de algum tempo.

A história de As Faces da Marca está mais próxima de séries documentais como A Indústria da Cura e Na Rota do Dinheiro Sujo. O primeiro episódio de A Indústria da Cura aborda justamente casos de marketing multinível na polêmica indústria dos óleos essenciais. Já os episódios de Na Rota do Dinheiro Sujo mostram notáveis casos de abuso do poder econômico e capitalismo predatório, com alguns dos culpados responsabilizando as vítimas pelas perdas sofridas.

As Faces da Marca pode não ser tão empolgante quanto os documentários sobre seitas, mas é bem revelador sobre os limites éticos de um negócio de família. A fronteira entre uma cultura corporativa marcada pela informalidade e um ambiente de trabalho abusivo pode ser bem sutil. Quando os associados finalmente percebem que a organização é muito mais uma empresa do que uma família, eles podem até conseguir parte do dinheiro investido de volta, mas não conseguem recuperar o tempo que deixaram de passar ao lado dos próprios familiares.

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