Crítica: Dias Sem Fim

All Day And a Night, EUA, 2020



Dias Sem Fim é uma informativa reflexão sobre a vida de um dos muitos ocupantes do sistema carcerário dos EUA

★★★★☆


Apesar de contar uma história familiar, que serve como moldura para vários outros dramas ambientados no mundo do crime, Dias Sem Fim consegue se sobressair graças a uma abordagem um pouco mais ousada que o normal. A narrativa não-linear está mais interessada em contextualizar as escolhas feitas por Jahkor (Ashton Sanders) do que em explorar o submundo do crime no qual ele está inserido, o que resulta em um cativante estudo de personagem. Mesmo a didática narração em off mais ajuda do que atrapalha o complexo retrato montado pelo filme, oferecendo interessantes reflexões sobre a relação entre pobreza, crime e encarceramento.

O filme tenta colocar o espectador na pele de Jahkor e revelar o que ocorre por trás dos olhos de um jovem negro morador de um bairro periférico. Para quem está assistindo, as escolhas corretas podem parecer óbvias e intuitivas, mas a narrativa tenta expor a realidade na qual o protagonista está inserido desde criança e como isso afeta a sua visão de mundo. Na prática, suas escolhas podem até ser menos limitadas do que ele acredita, mas sua capacidade de enxergá-las jamais foi completamente desenvolvida.

Um dos principais culpados por isso é o seu pai, JD (Jeffrey Wright), que também não consegue enxergar nada além da realidade periférica que sempre conheceu. Aquela é a vida que ele viveu e aquelas são as habilidades que o ajudaram a sobreviver, e são elas que ele tenta ensinar para o filho. Se ele é duro com o garoto, é porque o mundo lá fora foi duro com ele. Ele acredita que já sabe tudo o que precisa saber sobre a sociedade, e tenta passar esse conhecimento adiante. Por mais que manifeste a vontade de dar uma vida diferente para o filho, ele não sabe como. E não há como Jahkor herdar algo que o pai dele não possui.

E assim, Dias Sem Fim revela o ciclo de pobreza e violência que se mantém há várias gerações em países como EUA e Brasil. A predominância de populações negras dentre as classes mais baixas das sociedades ainda é um reflexo dos tempos da escravidão e de incompletos processos de abolição da escravatura, que muitas vezes deixavam as populações recém libertadas sem nenhum amparo social. Assim como Jahkor, essas pessoas tinham a opção de sobreviverem tornando-se mão-de-obra barata para a economia local ou recorrerem a atividades ilegais para terem vidas minimamente confortáveis.

É claro que isso não exime Jahkor da responsabilidade por suas ações e não justifica os crimes violentos que ele cometeu. A questão é que, ainda jovem e depois de uma infância marcada pela violência e pelos “ensinamentos” do seu pai, ele precisou fazer escolhas que jovens de classe média ou classe média alta jamais tiveram que fazer. Além disso, ele conclui que levar uma vida correta e fazer apenas o que é certo não dá nenhuma garantia de sucesso para jovens como ele, como presenciou no caso de seu amigo Lamark (Christopher Meyer). Diante disso, ele sente que jamais teve uma opção de verdade.

Mas a relação entre pobreza e criminalidade não é exclusividade de populações afrodescendentes, e já foi explorada em filmes como Parasita (crítica aqui) e A Qualquer Custo (crítica aqui). Nesse último, dois irmãos partem em uma série de assaltos a banco com o intuito de evitar a perda da propriedade da família, e um deles tentar explicar seus atos dizendo:

Eu fui pobre a vida toda. Assim como os meus pais foram, e assim como seus pais antes deles. É como uma enfermidade passando de geração para geração, se torna uma doença hereditária. Ela infecta todo mundo que você conhece, mas isso não vai acontecer com meus filhos. Não mais.

Com o ótimo roteiro e a competente direção de Joe Robert Cole, Dias Sem Fim consegue atingir o ambicioso objetivo ao qual se lança, representando não apenas a já conhecida realidade da periferia, mas também o complicado e pouco explorado espaço mental no qual os jovens moradores desses lugares se encontram. Para tal, a sutil e dedicada atuação de Ashton Sanders no papel principal é de extrema importância, e o ator emplaca mais um grande trabalho em sua ascendente carreira.

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