Matrix, Westworld e Bandersnatch


*Contém SPOILERS do filme Matrix e das séries Westworld e Black Mirror, inclusive do episódio especial Bandersnatch.

O que é real? Como você define “real”? Se você está falando sobre o que você pode sentir, o que você pode cheirar, o que você pode saborear e ver, então o “real” não passa de sinais elétricos interpretados pelo seu cérebro.
– Matrix (1999)

Apesar de estar sendo considerado um filme, Bandersnatch está mais para um episódio especial da série Black Mirror (o outro é White Christmas). Mas esse episódio traz uma novidade: o espectador pode orientar certas decisões do protagonista e explorar múltiplos caminhos narrativos, uma experiência que pode ter até 5 horas de duração.

Mais do que uma simples curiosidade, essa experiência não apenas dialoga mas, em alguns caminhos, também faz parte da história que está sendo contada. O protagonista Stefan Butler (Fionn Whitehead) está, em 1984, tentando construir um jogo de vídeo game no qual o jogador pode definir o caminho que seu personagem vai percorrer até os vários finais possíveis, ao invés de limitá-lo ao esquema de fases fixas e obrigatórias comuns na época.

Em determinado ponto, Stefan percebe que não está agindo de forma inteiramente consciente e passa a “interagir” com a entidade que lhe envia os impulsos psicológicos que estão orientando suas decisões, o espectador. Isso nos leva ao tema principal desse episódio: o livre arbítrio, ou a ilusão de que ele existe. Esse tema também foi abordado recentemente na série Westworld e é um dos pilares da trilogia Matrix.

O Passageiro

Na segunda temporada de Westworld, é revelado que o labirinto que o Homem de Preto (Ed Harris) tanto buscava se trata do “labirinto da consciência” que os Anfitriões (androides ou “seres humanos artificiais” com programação limitada) poderiam percorrer para se tornarem autônomos e tomarem decisões que vão além de sua programação básica. Em outras palavras, um dos grandes motores da trama é o surgimento do livre arbítrio nesses seres que “nasceram” como entidades virtuais, o que dá origem a uma nova forma de vida inteligente no planeta Terra.

Vários episódios de Black Mirror já exploraram as implicações da existência de seres dessa natureza e de quais direitos eles poderiam usufruir. Por exemplo, em White Christmas, uma mulher faz uma cópia de sua própria consciência para instalá-la em uma casa inteligente e controlá-la de acordo com seus particulares gostos. Por ser uma cópia exata da pessoa real, a consciência virtual saberia exatamente como preparar seu café da manhã e como controlar outros aspectos da moradia.

Porém, quando essa cópia virtual se recusa a ser uma “escrava” de sua versão humana original, o fornecedor do serviço a submete a torturas psicológicas (como deixá-la sozinha por seis meses em um mundo virtual vazio que se assemelha a uma prisão solitária) até que ela desista e passe a obedecer sem ressalvas a contratante do serviço. Para eles, essa consciência virtual, apesar de ter os próprios pensamentos, angústias e sensações, não possuem direitos humanos.

Outros episódios de Black Mirror que lidam com temas semelhantes são Be Right Back, San Junipero, USS Callister, Hang the DJ e Black Museum.

A cópia de seres humanos para o ambiente virtual é um outro grande motor de Westworld. Na segunda temporada também é revelado que os criadores do parque deixaram uma inteligência artificial responsável por coletar dados comportamentais dos visitantes, com o intuito de armazenar cópias virtuais de suas personalidades para uso futuro.

Nessa entrevista, os criadores da série falam, dentre outras coisas, sobre a inspiração para o último episódio da segunda temporada e como ele foi influenciado por esse artigo da The Atlantic (comentado e parcialmente traduzido aqui). Segundo o artigo, há um consenso na comunidade da neurologia de que não existe isso de “livre arbítrio”, e que na verdade todas as nossas ações são definidas por impulsos que não controlamos conscientemente. Na entrevista, um dos criadores diz:

O nome desse episódio é “O Passageiro” em parte porque há essa outra coisa que está no controle, o nosso subconsciente. (…) Como nós imaginamos – e até rimos disso durante o trabalho – se você se lembra da abertura de Os Simpsons, Maggie [está em um carro e] tem um volante de mentirinha… isso é a consciência. Marge está ao volante, mas [Maggie] não consegue falar com ela. Nós somos Maggie olhando pela janela e imaginando que estamos tomando decisões, mas a maioria das evidências empíricas sugere que, na verdade, não estamos tomando essas decisões.

Essa visão aparece no episódio quando a inteligência artificial responsável pelas cópias explica como aperfeiçoou o processo depois dos fracassos iniciais:

Inicialmente, eu fui seduzido pelas histórias que eles contam para si próprios sobre quem eles são e porque eles fazem o que fazem. Eu precisava saber os motivos pelos quais eles tomam as decisões que eles tomam. E quanto mais eu buscava uma resposta, mais eu percebia que eles também não sabem. (…)

O melhor que eles conseguem fazer é viver de acordo com sua “programação”. As cópias não falharam por serem muito simples, mas por serem muito complexas. A verdade é que um ser humano é apenas um breve algoritmo. (…) Uma vez que você os conhece, seus comportamentos são bem previsíveis. (…)

Eu recriei cada visitante que já pisou nesse parque. A maioria deles é suave. Eles variam entre amor e orgulho, mas é claro que há exceções, como os que são irreparáveis. Mas nenhum deles está realmente no controle de suas ações.

Você (Provavelmente) Não Existe

A inexistência de livre arbítrio joga por terra boa parte da mitologia da trilogia Matrix. Nela, a diferença entre viver no mundo virtual e no mundo real é que no virtual suas escolhas são limitadas pela inteligência que controla o sistema. Em outras palavras, no mundo real as pessoas teriam o livre arbítrio.

No universo da Matrix, o programa conhecido como O Arquiteto só conseguiu estabilizar o sistema de realidade virtual na terceira tentativa. Na primeira, ele tentou criar um mundo ideal, sem problemas ou sofrimentos, mas a humanidade o rejeitou. Na segunda versão, ele adicionou imperfeições da natureza humana e a relação básica entre causa e efeito, mas ela também foi rejeitada.

Foi apenas quando o Arquiteto deu aos seres humanos a ilusão de livre arbítrio que ele conseguiu estabilizar o sistema, diminuindo a taxa de rejeição para apenas 1% da população. Mas se o livre arbítrio também não existe no mundo real, os rebeldes que lutam ao longo dos três filmes estão apenas trocando uma ilusão por outra.

Nesse popular vídeo (que possui legendas disponíveis em português), intitulado You (Probably) Don’t Exist, o narrador defende a tese de que nenhuma das escolhas que fazemos em nosso dia a dia é controlada pela nossa consciência. “Você”, na realidade, não faz nada. E se quem nós somos é definido por tudo o que fazemos, pensamos e sentimos, então “o que nós somos” não é definido pela nossa consciência. Sendo assim, “você”, como ser consciente, não existe. Em outras palavras:

Parece que os sistemas sob você, sob ser consciente, podem ser bem mais essenciais do que os sistemas conscientes, e que escolher fazer algo é apenas uma brincadeira que o cérebro faz posteriormente para justificar o que ele já ia fazer de qualquer jeito.

O vídeo termina em uma nota mais otimista, afirmando que, pelo menos, nós estamos cientes da nossa existência: “Mesmo que isso tudo seja uma farsa, há algo dentro de nós que sabe que existe.”

Por enquanto, isso deve ser o suficiente, ainda que estejamos presos em uma “sala trancada” ou em um “labirinto no deserto“.

Seguindo o Coelho Branco

A ilusão de livre arbítrio também é a solução encontrada por Stefan, protagonista de Bandersnatch, para terminar o seu jogo. Sua explicação:

Eu estava tentando dar ao jogador escolhas demais. Então eu voltei e removi um monte de coisas. Agora eles apenas possuem a ilusão de livre arbítrio. Mas na verdade, eu escolho o final.

Essa cena ocorre no principal dos vários finais possíveis. Sim, há um final principal. Assim como Stefan dá aos jogadores a ilusão de escolha, os realizadores de Bandersnatch dão ao espectador a ilusão de controle sobre a trama. Os vários finais alternativos são interessantes e, às vezes, cômicos, mas também são abruptos e não concluem de forma satisfatória a jornada do protagonista.

É apenas quando Stefan termina o jogo de forma satisfatória (o produto é avaliado com 5 estrelas pela crítica especializada) e se torna infame pelo crime que cometeu que sua história realmente termina. É nesse fluxo narrativo que fica claro como ele entrou no mesmo surto psicótico que o escritor do livro Bandersnatch, obra na qual ele baseia seu jogo, e como a programadora que retoma seu trabalho nos dias atuais provavelmente vai seguir no mesmo caminho.

A palavra “bandersnatch” se refere a um tipo de criatura que existe no universo de Alice no País das Maravilhas, e (assim como o protagonista de Matrix) os três personagens citados acima parecem ter ido longe demais na toca do coelho.

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