Falcão e o Soldado Invernal: Símbolos, Heranças e Radicalizações


Assim como a série WandaVision (resenha aqui) serviu para mostrar a personagem Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen) se transformando oficialmente na Feiticeira Escarlate, Falcão e o Soldado Invernal serve para mostrar a transição de Sam Wilson (Anthony Mackie) de Falcão para Capitão América. A Marvel Studios poderia ter simplesmente introduzido o personagem com o novo manto em algum filme futuro, mas preferiu utilizar essa série para abordar as implicações políticas e sociais de um homem negro assumir o papel. Ao lado de Bucky Barnes (Sebastian Stan), o Soldado Invernal, fica claro tanto para o público quanto para o próprio Wilson que ele precisa ser o novo Capitão.

Nesse universo, o escudo do Capitão América, com suas cores patrióticas e longa história de serviço, serve como um símbolo de todos os valores sobre os quais os Estados Unidos foram construídos. Ele também é um lembrete da honra e da retidão de seu portador original, o supersoldado Steve Rogers (Chris Evans), um herói exemplar e inspirador que servia como bússola moral tanto para os Vingadores quanto para o país. Em suma, o objeto pode ser considerado uma “manifestação física” de todos os aspectos positivos da História e da existência dos EUA.

Paralelamente, a cor da pele de Sam Wilson serve como um lembrete do tratamento dispensado à população negra nos EUA desde a sua fundação. Escravidão, segregação e diferentes tipos de racismo marcaram a História dos povos não-brancos no país, que sempre foram tratados como inferiores. Por muito tempo, apenas o homem branco era considerado digno de ocupar os altos escalões do poder ou de ser uma figura inspiradora para a população. Se o escudo traz consigo uma herança de honra e retidão, a História dos afro-americanos traz consigo uma herança de pobreza e racismo.

Na série, as cicatrizes sociais são representadas pela história de Isaiah Bradley (Carl Lumbly), um supersoldado negro que também já havia atuado como Capitão América ou algo semelhante. A diferença é que Bradley e outros soldados de cor foram usados como cobaias pelo governo, que pretendia desenvolver um novo soro de supersoldado para, provavelmente, tentar criar um novo Steve Rogers. Bradley foi o único caso de sucesso, tendo como “recompensa” décadas de prisão e experimentos científicos sendo feitos em seu corpo.

A desconfiança de Bradley em relação às autoridades e aos símbolos patrióticos são compartilhadas por muitos afro-americanos na vida real. Até os experimentos dos quais ele e seus companheiros foram vítimas são inspirados em casos verídicos, como no infame Estudo da sífilis não-tratada de Tuskegee. Esse experimento utilizou 399 homens negros que foram diagnosticados com sífilis para observar a evolução da doença quando não há tratamento, sem avisar para eles sobre o diagnóstico e sobre a natureza nociva do estudo.

Esse e outros aspectos desse problemático histórico já foram abordados em séries como Watchmen (2019), sobre a qual escrevi aqui, e Lovecraft Country (resenha aqui). Nelas, a traumática História de perseguição e segregação de afro-americanos ao longo do Século 20 é misturada com elementos de terror, ficção-científica e fantasia. Já na série documental Escravidão: Uma História de Injustiça (resenha aqui), o ator Samuel L. Jackson e vários especialistas exploram os diversos aspectos do tráfico de escravos no Atlântico ao longo de mais de mais de 400 anos.

Já filmes como Mississippi em Chamas, Imperium: Resistência Sem Líder e Infiltrado na Klan mostram os esforços do FBI e de outras agências de segurança para conter o problema do supremacismo branco nos EUA. Por outro lado, o filme Judas e o Messias Negro (crítica aqui) mostra o quão longe o mesmo FBI estava disposto a ir para evitar a organização política das comunidades negras, tratando o Partido dos Panteras Negras como se fosse tão radical quanto o Ku Klux Klan, que promovia segregação e linchamentos.

Em Falcão e o Soldado Invernal, o Barão Zemo (Daniel Brühl) aplica o conceito de supremacismo às pessoas que são ou pretendem se tornar supersoldados. Para ele, é inevitável que as pessoas superpoderosas se considerem superiores às demais e acabem passando por um processo de radicalização. Porém, seus planos de exterminar todos os supersoldados e super-heróis revela que ele sofre do mesmo tipo de extremismo que está tentando combater.

Esse é um dos tipos mais comuns de radicalização: a pessoa acredita que a sua causa é tão justa e tão correta que toda violência cometida em nome dela é considerada justificável. Isso ocorre com certa frequência dentre grupos políticos e religiosos, especialmente quando eles consideram a própria doutrina a mais adequada para “salvar” a humanidade ou “equilibrar” a sociedade. Isso lembra uma citação do escritor Frank Herbert, autor de Duna: “As pessoas de quem eu mais desconfio são aquelas que querem melhorar as nossas vidas mas que só conseguem enxergar uma única forma de se fazer isso.”

As grandes representações de extremismo na série ficam por conta de dois personagens que estão em lados opostos da lei. Karli Morgenthau (Erin Kellyman) é uma ativista pelos direitos dos refugiados que surgiram depois dos eventos de Vingadores: Ultimato (crítica aqui), recorrendo à violência para conseguir suprimentos para as pessoas abandonadas pelos Estados nacionais. Depois de tomar o soro de supersoldado, ela se vê disposta a ferir e matar qualquer pessoa que se coloque em seu caminho, invalidando qualquer nobreza que havia em sua missão.

O homem oficialmente encarregado de impedi-la passa por um processo semelhante. John Walker (Wyatt Russell) sente toda a pressão de ter sido escolhido pelo governo como novo Capitão América e está disposto a fazer tudo o que tiver que fazer para cumprir a missão. Sua mentalidade foi moldada nas zonas de guerra do Afeganistão, onde suas ações ficavam longe dos olhos do grande público e, por mais violentas e questionáveis que fossem, lhes rendiam medalhas. Quando ele faz algo equivalente como Capitão América e diante dos olhos do mundo, o governo dos EUA o abandona, deixando-o sem emprego e sem pensão.

Entra então a figura de Sam Wilson como antítese do extremismo. Com experiência no aconselhamento de veteranos de guerra, ele consegue enxergar tanto Morgenthau quanto Walker como seres humanos diante de situações difíceis. As ações de Wilson não são guiadas unicamente por uma missão que precisa ser cumprida ou inimigo que precisa ser derrotado. Ele consegue ir além, avaliando suas opções diante de situações complexas e sendo capaz de resolver conflitos sem o uso de violência, se isso for possível.

Além de ter potencial para ser ainda mais exemplar e inspirador que Steve Rogers, Wilson representa mais uma oportunidade de mostrar que uma pessoa negra é tão digna quanto qualquer outra de representar o país construído por seus antepassados. O novo Capitão América também tem a oportunidade de mostrar que o caminho para a igualdade não passa por extremismos, mas pelo reconhecimento da humanidade presente em todos os seres humanos.

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