Crítica: O Relatório

The Report, EUA, 2019



Filme mostra os bastidores de um dos mais controversos episódios da História recente dos EUA

★★★★☆


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O Relatório dramatiza tanto os bastidores da elaboração quanto o próprio conteúdo do relatório intitulado Estudo do Comitê Sobre o Programa de Detenção e Interrogação da CIA, que foi resultado de uma investigação promovida pelo Comitê de Inteligência do Senado dos EUA.

Conduzido pelo investigador Daniel J. Jones (Adam Driver) sob a tutela da senadora Dianne Feinstein (Annette Bening), o estudo revelou para o Senado e para o mundo o quão longe a CIA (Agência Central de Inteligência) foi com o uso das caras, ineficazes e criminosas “técnicas melhoradas de interrogatório”, termo que serve como um eufemismo para os métodos de tortura física e psicológica desenvolvidos por dois psicólogos contratados pela Agência.

Com uma narrativa ágil e envolvente, ainda que convencional, o diretor Scott Z. Burns consegue capturar e relacionar os aspectos políticos, emocionais e éticos dessa história real que teve início em uma sala de reuniões da CIA no início do século 21. Os recursos utilizados para representar a passagem do tempo podem ser mais comuns em documentários, com rápidos e grandes pulos temporais, mas isso não prejudica o impacto emocional e intelectual da narrativa.

Uma das decisões mais acertadas dos realizadores foi a de mostrar as cenas de tortura da forma como são descritas nos documentos aos quais o comitê investigativo teve acesso. Isso ajuda a contextualizar a revolta e o trauma causados pela mera leitura do material, que tem claras consequências psicológicas para Jones e sua equipe.

O Relatório dialoga com filmes e séries como Condor (comentário aqui), Zero Days (mais detalhes aqui), A Hora Mais Escura e, acima de tudo, Vice (crítica aqui), cinebiografia do ex-vice-presidente Dick Cheney. Cheney era o homem que de fato exercia o poder durante o governo de George W. Bush e foi ele quem deu a luz verde e forneceu o amparo legal para o início do programa de tortura. O que Jones tenta revelar com seu relatório são os detalhes burocráticos das ações autorizadas por Cheney com a ajuda do advogado John Yoo (interpretado por Pun Bandhu em O Relatório e por Paul Yoo em Vice).

Nos dois filmes, Yoo é mostrado concebendo algumas das mais sombrias interpretações legais de que se tem notícia. São suas ideias e pontos de vista que deram a segurança legal necessária para as práticas ilegais utilizadas por anos pelo governo norte-americano. As brechas que ele encontrava na legislação sobre a atuação da CIA e o tratamento de prisioneiros foram bem recebidas pelos assustados homens e mulheres responsáveis pela segurança do país após os atentados de 11 de setembro de 2001.

Eles estavam desesperados o suficiente para abandonar os princípios estabelecidos na constituição do país e acreditarem nas ideias defendidas pelos psicólogos e pseudo-cientistas James Mitchell (Douglas Hodge) e Bruce Jenssen (T. Ryder Smith), duas figuras que lembram os dois atrapalhados protagonistas da história real contada em Cães de Guerra (crítica aqui). Apesar de terem pouquíssima experiência e formação na área, os dois venderam seus “métodos de interrogação” como técnicas avançadas e embasadas no conhecimento científico, o que não era verdade.

Mesmo depois que uma investigação interna concluiu que as técnicas eram ineficazes e que os métodos convencionais eram mais apropriados, a CIA seguiu vendendo a ideia de que a aplicação de tortura era necessária e estava fazendo a diferença na luta contra o terrorismo. Diante do fracasso, a Agência resolveu mentir e desinformar.

Um sinal disso é como O Relatório menciona rapidamente o filme A Hora Mais Escura, que acabou se tornando uma parte da história que estava tentando contar. Ele aborda a caça e eliminação de Osama Bin Laden, e mostra que informações obtidas sob tortura podem ter contribuído para a localização do terrorista.

Entretanto, a história contada em O Relatório dá a entender que aquele filme está em sintonia com a versão oficial da CIA. A diretora Kathryn Bigelow e o produtor Mark Boal contaram com a colaboração da Agência para elaborar a história do filme, o que quase foi alvo de uma outra investigação do Comitê de Inteligência do Senado (havia a suspeita de que os cineastas tiveram acesso a informações confidenciais). Isso torna plausível a possibilidade daquela produção ter sido usada para influenciar a visão do público sobre o uso das técnicas de tortura.

Com um elenco estelar entregando ótimas performances, O Relatório é mais uma grande adição na lista de filmes sobre homens sérios tentando fazer a coisa certa (como em filmes sobre jornalismo). Ao resumir em duas horas de suspense as descobertas feitas por Jones ao longo de mais de 5 anos de trabalho, o filme torna o material mais acessível e se torna ele próprio um documento histórico.

* Assistido na 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo

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