Crítica: Nomadland

Nomadland, EUA, 2020



Drama traça um retrato profundo e emocionante de um problemático estilo de vida

★★★★★


A abordagem documental adotada pela diretora Chloé Zhao se combina perfeitamente com a atuação naturalística da atriz Frances McDormand para tornar Nomadland não apenas um estudo de personagem, mas também um estudo de um estilo de vida. Todos os aspectos da produção funcionam no sentido de realçar o mundo que Zhao e McDormand pretendem apresentar, dando voz a pessoas que se encontram excluídas do sistema econômico e mostrando uma das faces da pobreza na nação mais rica do mundo.

nomadland1O filme lembra muitos aspectos do documentário Indústria Americana (crítica aqui), que também faz uso de uma abordagem não intrusiva para traçar um retrato de uma determinada situação trabalhista no interior dos EUA. A diferença é que Nomadland é um “quase-documentário”, com uma atriz principal interagindo com pessoas reais que interpretam elas próprias para as câmeras. A diretora já havia feito isso no também aclamado Domando o Destino, que conta uma história real interpretada pelas próprias pessoas que a viveram.

Um dos poucos atores profissionais que aparecem em Nomadland é David Strathairn, que interpreta um viajante que oferece a Fern (McDormand) uma oportunidade de criar novas raízes. A vida na estrada como apresentada no filme pode parecer livre e bucólica, mas esse estilo de vida não foi a primeira opção de muitos daqueles personagens. No caso de Fern, sua vida terminou de se desestruturar quando sua cidade deixou de existir.

A crise econômica de 2008 causou o fechamento da usina que justificava a existência da cidade de Empire, no estado de Nevada. Uma vez que a empresa não iria mais mantê-la, todos os moradores tiveram que se mudar. As vidas construídas ao longo de décadas em torno das estruturas econômicas que as mantinham tiveram que ser abandonadas, e os moradores tiveram que deixar para trás as próprias raízes e, possivelmente, parte das memórias de seus antepassados.

nomadland2Casos como esse servem como aviso sobre a fragilidade das nossas sociedades. Para essas pessoas, é como se a civilização já tivesse caído. Com acesso limitado a moradia e a benefícios sociais, elas se juntaram aos grupos já “normalmente” excluídos, como indígenas e moradores de rua. Muitas delas possuem amigos e familiares que até tentam ajudar, mas que não constituem redes de segurança suficientemente confiáveis e dignas para pessoas adultas e independentes.

É por isso que muitos preferem (ou são empurrados para) a vida de nômade, que remonta aos primórdios da nossa espécie na superfície desse planeta. Ao invés de morar em “puxadinhos” e viverem de favor, elas preferem a independência e a comunidade da estrada. Há aqueles, como Fern, que, além de já não possuir raízes, também não possuem motivos (ou oportunidades) para recomeçar a vida do zero e se reestabelecer de forma convencional. E então eles viajam em busca de empregos temporários, servindo como “alimento” para a máquina corporativa dos EUA, mesmo quando já são idosos em idade avançada.

E é essa vida entre a estrada, as comunidades formadas nos estacionamentos e os (problemáticos) armazéns da Amazon que é apresentada em Nomadland. De alguma forma, o filme consegue transcender o que se espera de um drama e apresenta algo muito mais cru e autêntico do que a maioria dos documentários, com vidas reais e dramas reais ocorrendo na tela. Há aqui tanto a catástrofe de uma sociedade que não cuida dos seus quanto a busca por algo maior e mais belo do que qualquer sociedade pode oferecer.

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