Crítica: Bacurau

Bacurau, Brasil/França, 2019



Faroeste no sertão pernambucano usa elementos de Tarantino e Black Mirror para contar uma história autenticamente brasileira

★★★★☆


E se Quentin Tarantino dirigisse um episódio de Black Mirror que se passa no sertão pernambucano? Uma resposta possível é Bacurau, um faroeste brasileiro que começa a explorar tanto o lado pop quanto o potencial pulp da nossa História. Permeado por referências a elementos cult e a nomes consagrados do cinema mundial, a obra homenageia a sétima arte enquanto a aproxima de um mundo pouco explorado por ela.

A referência a Tarantino é lembrada mais facilmente por esse ser um renomado diretor contemporâneo que acaba de lançar sua própria homenagem ao cinema (a crítica de Era Uma Vez em Hollywood por ser lida aqui). Porém, também é fácil perceber em Bacurau a marca dos mestres que influenciaram o americano e muitos outros, como Sergio Leone e Akira Kurosawa. Os longos, tensos e desconfortáveis diálogos que culminam em violência poderiam ter saído tanto de um Tarantino quanto dos melhores faroestes espaguete.

A obra também tem aspectos de Brian de Palma e John Carpenter (que, inclusive, está na trilha sonora com a impactante Night), mas os diretores Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho fazem muito mais do que simplesmente reproduzir e homenagear os estilos de outros. Em Bacurau, a familiaridade de técnicas e estilos popularizados ao longo da centenária História do cinema é combinada com a novidade da representação de um Brasil profundo que raramente é visto nas telas de projeção.

O que Mendonça Filho e Dornelles fazem aqui é usar a familiaridade da linguagem para enriquecer a mensagem que está sendo passada. Inicialmente, a linguagem em si representa um contraponto à realidade que está sendo representada, apenas para posteriormente ser apropriada e integrada com elementos de realismo fantástico e da obra de Glauber Rocha. O resultado é um filme autoral que também funciona como puro entretenimento, apesar da controversa natureza política dos temas tratados.

Bacurau ficou bem mais redondo do que o terror As Boas Maneiras (crítica aqui), que é um outro filme brasileiro que mistura premissas de outros gêneros com aspectos marcantes da identidade nacional. O que tira um pouco do impacto daquela produção é a amplitude que ela tenta cobrir, mas ainda assim é um esforço bem-sucedido.

As obras distópicas geralmente surgem como avisos sobre os rumos de uma sociedade. O gênero nasceu na literatura (especialmente na de ficção científica) e fez uma bem-sucedida transição para o cinema, perdurando até hoje com filmes como Jogos Vorazes, Expresso do Amanhã (crítica aqui), Blade Runner 2049 (crítica aqui) e Jogador Nº 1 (crítica aqui). Esse também é o caso da série Black Mirror, que tenta alertar o espectador sobre as implicações éticas, morais e filosóficas do uso indiscriminado da tecnologia em nosso dia-a-dia.

Bacurau se insere nesse rol, mas, além de um aviso, ele traz também uma controversa promessa de resistência (que, de certa forma, lembra o Don’t Tread On Me da Bandeira de Gadsden). A parte do público que apoia os movimentos políticos de natureza autoritária que estão surgindo no país pode interpretar essa “promessa” como uma ameaça e usá-la para justificar a própria violência política já em curso. Em outras palavras, se distorcida ou levada muito a sério, a mensagem do filme corre o risco de acirrar ainda mais os ânimos em um já conturbado cenário político e se tornar uma profecia autorrealizável.

A mensagem pode parecer tão alarmista e paranoica quanto a de muitos filmes de ação norte-americanos, especialmente os que foram feitos durante a Guerra Fria. O tratamento que a narrativa dá ao caricato grupo de estrangeiros (que ficam ainda mais caricatos na versão dublada do filme) liderado pelo antagonista Michael (Udo Kier) parece beirar a xenofobia, mas isso é uma retribuição ao tratamento dado a árabes, russos, asiáticos e latino-americanos nas produções hollywoodianas. O filme parece dizer: aqui, vocês é que são os estrangeiros malvados que precisam ser derrotados violentamente.

É interessante notar que Bacurau não possui protagonistas claros. Apesar de Teresa (Barbara Colen) servir como ponto de vista do espectador e Pacote (Thomas Aquino) ser um candidato a anti-herói, nenhum dos dois está realmente no centro da trama. Mesmo a Domingas de Sonia Braga é apenas uma coadjuvante. É somente no catártico desfecho que o “personagem” central é revelado. Ele faz parte das pessoas e da História do pequeno povoado de Bacurau e esteve escondido em plena vista durante toda a projeção. A chegada de Lunga (Silvero Pereira) e o status de lendas que ele e Pacote possuem na comunidade deveriam nos ajudar a lembrar, mas estamos distraídos demais com Whatsapp e tecnologias ligeiramente futuristas.

E então a narrativa muda para o ponto de vista dos invasores, que partem para um último ataque ao vulnerável povoado. Porém, a fragilidade vai cedendo lugar para uma outra coisa, e eles vão lentamente encontrando os espinhos daquela terra seca e o silêncio mortal de uma resistência inesperada. O Cangaço respira. Adormecido mas não extinto, ele vai abrindo os olhos. Sempre à espreita, ele vai reaparecendo. Colt, Mauser, Winchester 44. E quem se lembra da abertura de Baile Perfumado pode praticamente escutar Chico Science cantando Sangue de Bairro e um dos “macacos” da volante gritando “Lampião, cão de uma figa!”

Na visão de Dornelles e Mendonça Filho, o Cangaço ressurge como uma vulgar demonstração de força. O banditismo por uma questão de insurgência. Ele é como o pássaro bacurau, que dificilmente pode ser visto durante o dia e caça apenas durante a noite. E está começando a escurecer.

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