Crítica: As Boas Maneiras

As Boas Maneiras, Brasil/França, 2017



Apesar de imperfeito, filme insere uma alta dose de originalidade no cinema nacional

★★★☆☆


O principal mérito de As Boas Maneiras é mostrar o incrível talento dos diretores e roteiristas Juliana Rojas e Marco Dutra. A dupla navega por vários gêneros e temas para compor um autêntico filme brasileiro de terror. Entretanto, eles vão um pouco longe demais ao tentar cobrir mais gêneros e acontecimentos do que o ideal em um único filme. Isso tira um pouco do impacto do resultado final, que acaba sendo inferior a suas partes isoladas.

Ao invés de ignorar a realidade brasileira para entregar um puro filme de gênero, os realizadores decidem incorporar essa realidade no mundo fantástico que está sendo apresentado. As circunstâncias que levam Clara (Isabél Zuaa) e Ana (Marjorie Estiano) a compartilharem uma vida cotidiana não são estranhas em nossa sociedade: filha de uma família aparentemente tradicional e abastada do Brasil rural e morando sozinha na cidade de São Paulo para ter uma criança fruto de uma gravidez não-planejada, Ana contrata a negra e pobre Clara como “babá”, apesar de exigir que a funcionária seja responsável por toda a limpeza e manutenção da casa.

O ato inicial de As Boas Maneiras está mais próximo de filmes como O Som ao Redor (comentário aqui) ou Aquarius (crítica aqui), e o restante da narrativa poderia facilmente seguir esse caminho. Porém, depois de estranhos eventos que acabam aproximando as duas mulheres, elas se envolvem romanticamente em uma dinâmica que lembra o ótimo A Criada (crítica aqui). Já a segunda parte da projeção aposta em um crescente clima de suspense até o inevitável clímax, em um estilo que lembra o ritmo de um Pedro Almodóvar com um toque de George Romero ou John Carpenter.

Para compor essa cocha de retalhos cinematográfica, os diretores equilibram com maestria o drama com o terror psicológico, além de passar por territórios como os do humor negro, romance, body horror e até mesmo o musical (!). No quesito body horror, uma cena específica está fadada a se tornar inesquecível para o espectador. Quando analisada de forma fria e objetiva em seus aspectos mais práticos e mecânicos, uma gravidez já possui características psicologicamente inquietantes; mas quando algumas dessas características são exploradas como fontes de terror, o resultado pode ser traumatizante. Minha recomendação é que mulheres grávidas se aproximem desse filme com o máximo de cautela.

Tudo isso é feito sem deixar de lado a cultura na qual essas personagens estão imersas. Seja nas cenas nas quais Ana dança ao som de sucessos do sertanejo universitário ou seja no provincialismo da senhoria de Clara, os sinais de um Brasil profundo e repleto de contradições jamais deixam a tela. Mais que isso, os cineastas fazem uso da superstição e folclore populares para montar o pano de fundo para a materialização de uma criatura fantástica cuja lenda já deixou muitas crianças brasileiras sem conseguir dormir. Isso gera uma nova experiência para o espectador brasileiro: acostumado com cenários de terror sobrepostos principalmente a elementos culturais dos EUA (high schools, subúrbios padronizados, acampamentos na floresta, etc.), talvez seja ainda mais chocante ver esses elementos invadindo um típico lar brasileiro ou mesmo uma festa junina.

Entretanto, com 2h15m de duração e duas partes bem definidas, a longa narrativa acaba diluindo o impacto de todos esses elementos. Lançadas de forma independente e com algumas arestas aparadas, cada uma das metades de As Boas Maneiras dariam ótimos filmes, com seus próprios méritos e focados em seus próprios argumentos. Porém, juntas, elas possuem informação demais para o espectador processar calmamente, diminuindo assim o impacto de cada ideia ou acontecimento. O filme pode ser cansativo não porque a narrativa se arrasta, mas porque quando a segunda parte começa a impressão que se tem é que acabamos de assistir um filme e estamos começando a assistir outro.

Além disso, enquanto o final da primeira parte é intenso e chocante o suficiente para ser a conclusão do filme, o final da segunda deixa um pouco a desejar nesse aspecto. Uma vez que Clara perde o controle da situação, a espiral de conflitos e violência desencadeada poderia ser bem mais caótica e impiedosa, nos moldes, por exemplo, do final do suspense O Convite (comentário aqui). No circuito comercial, isso certamente daria aos espectadores a sensação de que valeu a pena ter acompanhado as mais de 2h de projeção. Como filme de gênero, isso fecharia com chave de ouro a bem trabalhada construção do universo.

Voltando aos destaques positivos da produção, as atuações de Isabél Zuaa e Marjorie Estiano estão fantásticas. As duas conduzem Ana e Clara naturalmente de um convívio tenso e distante para uma relação física e sensual, chegando até os extremos de aflição de uma maternidade muito especial. Nesse sentido, Zuaa dá um show à parte na segunda metade do filme, sendo quase que exclusivamente o centro do drama. O outro destaque vai para Miguel Lobo, interprete do pequeno Joel, que, apesar de irregular, tem alguns momentos fantásticos nessa produção. A não ser que eu esteja enganado, o título do filme faz referência a como todos esses personagens rompem com o bom comportamento esperado deles, afetando assim suas próprias vidas e das pessoas ao seu redor.

Em suma, As Boas Maneiras é composto por dois filmes empacotados em um só. Os diferentes momentos foram feitos com maestria e precisão; apenas não deveriam estar todos juntos. A produção é quase impecável, e os cuidados com os efeitos visuais (sobre os quais os diretores falam nessa entrevista) fazem a diferença no resultado final. Essa pode não ser uma obra-prima, mas é boa o suficiente para gerar grandes expectativas sobre o trabalho dessa dupla.

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