Agente em Campo: A Era da Traição Absoluta


Imagine ter sido um dos agentes de campo na linha de frente da Guerra Fria; ter dedicado anos e anos de sua vida na defesa da ideia de uma civilização ocidental; ter mentido, traído, manipulado e espionado em nome da pátria e do seu modo vida; ter derrubado presidentes e instalado ditaduras na Ásia e na América Latina; ter perdido colegas e amigos numa guerra travada em escritórios, em ruas escuras, em celas de prisão e em outros locais protegidos dos olhos e do reconhecimento do público em geral. E depois de tudo isso, imagine ter vivido o suficiente para ver o estado do mundo no ano de 2020.

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Imagine ver o tal mundo ocidental se destruindo internamente, graças, em parte, aos esforços de um ex-agente da KGB que há décadas lidera a Rússia. Vladimir Putin não precisa avançar agressivamente sobre posições ocidentais. Tudo o que ele precisa fazer é incitar as divisões internas das pequenas e das grande potências, ajudar perfeitos idiotas de extrema-direita (ou de extrema-qualquer-coisa) a ocuparem os “tronos” do velho e do novo mundo e, então, simplesmente esperar que eles abram mão do poder e da influência que haviam sido conquistados ao longo dos últimos setenta anos.

Qual será a sensação?

O ex-espião e escritor John Le Carré dá a sua resposta em Agente em Campo (publicado em Portugal com o título Agente no Campo), romance publicado em outubro de 2019. O autor já havia abordado o tema do Brexit em Um Legado de Espiões (resenha aqui), mas é nesse novo trabalho que ele explora as possíveis consequências desse e de outros desenvolvimentos da geopolítica recente sobre uma perplexa comunidade de inteligência.

Na obra, o agente do serviço secreto britânico Nat volta para seu país depois de vinte e cinco anos de operações secretas no exterior. Aos quarenta e sete anos de idade, ele está pronto para aceitar sua irrelevância para o serviço e finalmente dar a devida atenção para sua esposa, Prue, e para sua quase adulta filha, Steff. Mas um colega do passado o convida para uma nova posição em Londres, tentando reabilitar uma estação de espiões que parece ter caído na irrelevância há mais tempo que o próprio Nat.

Entre a convivência em família, o trabalho na estação e os jogos de badmínton com seu novo e jovem amigo Ed, a vida de Nat parece estar caminhando para uma nova estabilidade. Enquanto a relação com sua segunda em comando Florence ainda precisa de alguma calibração, os encontros esportivos com Ed o mantêm ativo e estimulado.

Mas se o experiente servidor do país e da Rainha encara o mundo atual com decepção e reticência, Ed o encara com fúria e ultraje. Em cada um dos encontros, a conversa entre os dois é dominada pelo mais jovem criticando a atual situação de seu país, da Europa e do mundo. Segundo ele, tanto Donald Trump quanto os inúteis políticos e burocratas que defendem o Brexit não passam de idiotas a serviço dos interesses de Vladimir Putin, que não é nada mais do que o “diabo encarnado”. E, ao que tudo indica, Ed é o personagem que tem as opiniões mais próximas das do próprio autor.

Para um ex-espião como Le Carré, o fantasma do inimigo soviético se manifesta não por meio de autoproclamados comunistas ou por jovens revoltados que usam a foice e o martelo como símbolo de resistência, mas sim por meio das maquinações e manipulações promovidas por agentes estatais visando trazer à tona o que há de pior nas sociedades ocidentais. Os comunistas do mundo desenvolvido ofereciam uma ameaça real quando ainda podiam ser recrutados pela grande potência comunista da época, mas ela já não existe. Mesmo as guerrilhas que “assombravam” a América Latina já não passam de lembranças do passado, com o governo cubano e o que restou das Farc sendo relegados ao status de “fósseis vivos”.

Le Carré sabe que nenhuma guerra, mesmo uma “fria”, é travada apenas por motivos ideológicos ou por questões de “princípios”. Nunca é uma questão de quem está certo e quem está errado, ou de qual é o melhor sistema político ou econômico. É sempre uma questão de poder e influência; de quem controla mais recursos e possui mais aliados; de quem dá a palavra final nas grandes questões políticas e geopolíticas. O épico embate entre capitalismo e comunismo está mais para uma fantasia simplória oferecida ao grande público (incluindo os soldados rasos) para que ele tenha a ilusão de que entende o que está acontecendo.

É por isso que pouco importa para Putin se os grupos que desestabilizam os países adversários são de extrema-esquerda ou extrema-direita. O importante é que eles canalizem a insatisfação popular para vitórias políticas de figuras tão radicais quanto incapazes, que irão, direta ou indiretamente, favorecer os interesses do novo “czar”. Enquanto o Brexit prejudica a unidade europeia e Trump põe em jogo a influência americana em órgãos internacionais como a ONU e a OTAN, Putin pode se concentrar em manobras políticas internas para permanecer mais algumas décadas no poder. Com os adversários externos ocupados com perfeitos atos de autossabotagem, ele pode focar nos poucos adversários internos.

Em determinado ponto, Agente em Campo apresenta a seguinte descrição:

Putin sempre foi um espião de quinta categoria. Agora, ele é um espião que se tornou um autocrata e que interpreta todos os aspectos da vida em termos de conspirações secretas. Graças a Putin e sua gangue de stalinistas de segunda mão, a Rússia não estava indo adiante para um grande futuro, mas sim em marcha ré para seu sombrio e delirante passado.

O que chama a atenção é que uma descrição semelhante pode ser aplicada a um outro líder mundial: o presidente brasileiro Jair Bolsonaro. Se, no fim dos anos 1980, o espião Putin estava decepcionado com o fim da União Soviética, o capitão Bolsonaro, por sua vez, estava decepcionado com o fim da ditadura militar brasileira. Ele passou a ter um perfil mais político depois que resolveu bancar o sindicalista e vazar informações do Exército para a imprensa, o que lhe rendeu processos disciplinares, a saída da corporação (apesar de não ter sido oficialmente expulso) e um mandato de vereador no Rio de Janeiro. Em 1993, o general e ex-presidente Ernesto Geisel o chamaria de um “mau militar”, dizendo:

Presentemente, o que há de militares no Congresso? Não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar. Mas o que há de militar no Congresso? Acho que não há mais ninguém.

Em um dos testemunhos de um dos processos ao qual respondeu no Exército, seu superior afirmou que Bolsonaro possuía “aspirações distanciadas do alcance daqueles que pretendem progredir na carreira pelo trabalho e dedicação”, afirmação que se mostraria razoavelmente correta depois que os mais de trinta anos de carreira política do então réu foram mais marcados por loteamento de cargos e polêmicas vazias do que por contribuições reais para a sociedade brasileira.

Tudo isso torna Bolsonaro exatamente o tipo de incompetente e bem-intencionado “político sabotador” que Putin apoiaria, como fez com Trump na eleição de 2016. Apesar de Putin não ter colaborado para a eleição de Bolsonaro, sua relação com o presidente brasileiro é quase tão boa quanto sua relação com Nicolás Maduro, ditador de extrema-esquerda da Venezuela. Além disso, grupos radicais de extrema-direita que apoiam Bolsonaro já falam na “ucranização” do Brasil, em referência à profunda situação de instabilidade na qual a Ucrânia mergulhou durante e depois da chamada Revolução Ucraniana de 2014, sobre a qual já escrevi rapidamente aqui:

O presidente foi então destituído e um novo governo foi instalado, muito para o desgosto dos russos. Todo o processo foi permeado por uma complexa rede de influências, envolvendo não apenas a União Europeia, mas também os EUA, a Rússia e partidos de extrema-direita. Uma das principais consequências desse processo foi a invasão e ocupação russa do território ucraniano da Crimeia.

Vê-se então que, independente dos resultados gerados pela situação caótica do país alvo, a Rússia de Putin está sempre preparada para colher os espólios. Enquanto isso, a separação entre o Reino Unido e a União Europeia deixa os dois lados mais fracos, o que também pode ser dito sobre os infrutíferos conflitos que Trump vem buscando com a China. Com esses players isolados e/ou atacando uns aos outros, a vida de Moscou vai ficando cada vez mais fácil.

E o que um mero espião pode fazer diante desse cenário? Os agentes do ex-inimigo soviético não estão mais se esgueirando por ruas escuras e parques vazios. Eles ocupam altos cargos nos governos atingidos. São eles que dão as ordens. Seus atos de traição já não precisam ocorrer na calada da noite. Eles já não precisam vazar segredos nacionais. Eles só precisam dividir para que o oponente possa conquistar. É uma traição perfeita, pois é tão óbvia que sequer pode ser denunciada como tal. E é uma traição absoluta, já que o próprio espião está a serviço do traidor.

No caso de Agente em Campo, o protagonista Nat fica completamente perdido até entender que espiões russos estão inovando em termos de criatividade e oportunismo, aproveitando o descontentamento de homens como ele para cultivar traidores à moda antiga. Pois esse era exatamente o tipo de homens e mulheres que o próprio Nat recrutava ao longo de sua carreira: patriotas desiludidos com governos comunistas ou de quaisquer outras correntes ideológicas, dispostos a fazer alguma coisa para evitar que o país que eles amam desapareça sob o comando de líderes que parecem ter outras prioridades.

Diante disso, e depois que todos os aspectos da sua vida estão emaranhados na trama de espionagem, tudo o que resta ao nosso “herói” é tentar fazer uma última coisa certa, o que geralmente dá muito errado nas obras de Le Carré. E mesmo nas poucas vezes em que dá certo, é uma vitória que serve apenas como consolo diante de alguma derrota muito maior e muito mais absoluta.

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