Os Delírios da Segunda Temporada de Legion


Há um labirinto no deserto, construído na areia e na pedra. Um vasto labirinto de caminhos e corredores com centenas de metros de comprimento e mais de mil metros de largura. Cheio de voltas e caminhos sem saída. Imagine-o. Um enigma pelo qual você pode andar. No fim desse labirinto, há um prêmio esperando para ser descoberto. Tudo o que você tem que fazer, é chegar lá.

Você consegue ver o labirinto? Suas paredes, seu chão, suas voltas e curvas? Ótimo, pois o labirinto que você criou em sua mente também é, ele mesmo, um labirinto. Não há deserto, nem pedras ou areia. Existe apenas a ideia dele. Mas é uma ideia que vai dominar cada momento de sua vida. Você está dentro do labirinto agora. Não pode escapar.

Seja bem-vindo à loucura.

Essa é a primeira intromissão do Narrador (Jon Hamm) na segunda temporada de Legion. Ao longo dos episódios, sua voz, acompanhada de ilustrativas imagens, guia o espectador pelos pensamentos que dominam essa leva de episódios. Essa é uma temporada menos focada em acontecimentos e mais em ideias. Noah Hawley, criador da série, vai mais fundo nas questões de saúde mental que ele começou a abordar na primeira temporada. O resultado é um drama ousado não apenas na temática, mas também na narrativa e na subversão do gênero que é a base de seu personagem central. Como uma história de super-heróis, Legion está longe das aventuras dos X-Men ou Vingadores, enquanto se aproxima cada vez mais da genialidade de Watchmen.

A maioria dessas narrações é acompanhada de letreiros que dividem a temporada em partes. Aliás, não exatamente. Inicialmente, essas partes até fazem algum sentido, apesar de haver mais de uma parte em alguns episódios. Mas à medida que os episódios se passam, números são pulados ou a separação em partes simplesmente desaparece. Quando a Parte Doze finalmente surge no último episódio da temporada (são 11 no total), o espectador não tem a menor ideia de como chegou nesse número. Ao invés de ser fiel a alguma fórmula estabelecida no episódio inicial, a série deixa o espectador completamente desamparado e sem saber o que esperar.

O primeiro episódio apresenta a Parte Dois: A Loucura das Multidões e o Capítulo 3: Delírios. A narrativa que acompanha esse último complementa o trecho no início desse post para estabelecer a temática central dessa parte da história de David Haller (Dan Stevens), sua namorada Sydney Barrett (Rachel Keller) e o grupo de mutantes que os acompanham.

Agora devemos falar de Zhuang Zhou, que um dia dormiu e sonhou que era uma borboleta. Por horas, ele voou sob o agradável sol do inverno até não mais se lembrar que era Zhuang Zhou. De repente, ele acordou, e era Zhuang Zhou novamente. Mas naquele momento, ele não sabia se foi Zhuang Zhou que sonhou ser uma borboleta ou uma borboleta que estava sonhando ser Zhuang Zhou.

Um delírio começa como qualquer outra ideia, tais quais um ovo. Idênticas por fora, formato perfeito. Pela casca, você acha que não há nada errado. É o que está dentro que importa.

Albert A teve uma ideia. Um dia, enquanto caminhava, ele tropeçou e, por um momento, pareceu que sua perna direita não o pertencia. É assim que começa. A perna era claramente dele: estava ligada a seu corpo e, se machucada, ele sentia dor. Porém, apesar disso, a ideia cresceu. Esse é o poder de uma ideia. A cada dia que passava, Albert tinha cada vez mais certeza de que aquela não era a sua perna. Ele decidiu que não a queria mais, então um dia, ele foi até uma loja de ferramentas.

[Cena de Albert A serrando a própria perna.]

Veja, uma ideia apenas não é o suficiente. Nós temos ideias o tempo inteiro. Pensamentos e teorias aleatórias. A maioria morre antes que possam crescer. Para um delírio prosperar, outras ideias mais racionais devem ser rejeitadas, destruídas. Só assim um delírio pode evoluir para uma completa psicose.

No episódio 2, é introduzido o Capítulo Quatro: Umwelt.

Um sábio uma vez disse: a realidade é aquilo no qual se você parar de acreditar, não deixa de existir. Para um carrapato, a realidade é um produto de temperatura e ácido butírico. Sua percepção do mundo é sua realidade. Um cão de caça tem 200 milhões de receptores de olfato. Sua percepção do mundo é baseada, fundamentalmente, no cheiro. Um cachorro não reflete; um carrapato nunca pensa no universo fora de suas interações biológicas com ele.

Seres humanos, por outro lado… Imagine um garoto. Desde tenra idade, ele é ensinado errado.

[Cena de um garoto aprendendo que a cor vermelha se chama “verde”. Posteriormente, ele aprende que só deve atravessar a rua quando o sinal está verde para os pedestres, o que inevitavelmente resulta em seu atropelamento.]

Os seres humanos são os únicos seres que formam ideias sobre seu mundo. Nós o percebemos não pelos nossos corpos, mas pelas nossas mentes. Temos que acordar entre nós o que é real. Por causa disso, nós somos os únicos animais no mundo que enlouquecem.

No episódio 3, somos introduzidos à Parte Contágio: Cinco (sic).

Você conhece o efeito placebo, mas você já ouviu falar sobre o efeito nocebo, no qual o corpo humano tem uma reação física negativa a um mal sugerido? Sua mente tem o poder de criar sua própria realidade física. Por que bocejamos quando vemos outros bocejando?

Ao longo da História, ocorreram incidentes: a epidemia de dança de 1518, a epidemia de riso de Tanganyika, o milagre do leite hindu. Alguns acreditam que essas ocorrências foram respostas ao estresse. Os psicólogos chamam isso de um transtorno de conversão, no qual o corpo converte um estresse mental em um conjunto de sintomas físicos, como um tique ou espasmo. E, como qualquer outra doença, ele pode ser contagioso. Esse tipo de comportamento coletivo não está limitado a seres humanos.

O que sabemos é que em certas comunidades, sob certas circunstâncias, um sintoma físico involuntário desenvolvido por uma pessoa pode se tornar viral, e se espalhar de uma pessoa para outra, e para outra… Até toda a comunidade ser afetada.

Então minha pergunta para você é: se a ideia de uma doença pode se tornar uma doença, o que mais em nossa realidade é, na verdade, um transtorno?

O Capítulo Seis: Conspiração é mostrado no episódio 5.

Você já viu uma forma em uma nuvem? Ou um rosto em um corte de madeira? Várias vezes por ano, Jesus aparece para os desavisados em uma torrada. Será mesmo?

Os seres humanos são animais que procuram padrões. Por milhares de anos, nossa sobrevivência dependeu da nossa capacidade de identificar padrões na natureza para localizar predadores escondidos. Então agora, séculos depois, ainda estamos procurando. Ainda estamos tentando encontrar rostos em nuvens, como se nossas vidas dependessem disso.

Nossa crença de que um padrão deve existir é tão forte, que a mente humana vai rejeitar as partes que não se encaixam. Portanto, enquanto o pessimista vê perigo por trás das outras pessoas, o otimista vê amizade. É por isso que quando vemos uma coincidência, geralmente enxergamos uma conspiração.

A Parte Oito: Pânico Moral (se existe uma Parte Sete, eu não a encontrei) só aparece no sétimo episódio.

O pânico moral é definido como a ansiedade ou o alarme públicos em resposta a uma aparente ameaça aos padrões morais da sociedade. O caminho para o pânico moral tem várias fases. A primeira é a preocupação. Essa preocupação, inicialmente limitada, é passada de uma pessoa para outra, ampliada por forças culturais, até que a preocupação racional se torne medo irracional.

[Cena de uma mãe ficando preocupada com o filho e seu costume de ler histórias em quadrinhos. Sua preocupação é “transmitida” para outras pessoas, até o momento em que o debate atinge o nível nacional e pessoas são radicalizadas.]

As pessoas começam a acreditar que algo terrível está acontecendo, algo que não podem ver, que não podem controlar; que já prejudicou outros, e que ainda vai prejudicá-los. Independente da ameaça ser real ou não, a resposta certamente o é. E, geralmente, é excessiva.

Pergunte para você mesmo: o que é mais aterrorizante, o medo ou os amedrontados?

O Narrador volta ainda nesse episódio.

Então, o que aprendemos? Que um delírio é uma ideia. Que uma ideia pode ser contagiosa. Que seres humanos são animais que buscam padrões, o que significa que preferimos ideias que se encaixam em um padrão. Em outras palavras, nós não acreditamos naquilo que vemos; nós vemos aquilo no que acreditamos. E quando estamos estressados ou nossas crenças são desafiadas, quando nos sentimos ameaçados, as ideias que temos podem se tornar irracionais. Um delírio levando a outras enquanto a mente humana luta para manter sua identidade. E quando isso ocorre, o que começa como um ovo pode se tornar um monstro.

O episódio 8 começa com um provérbio creditado à fictícia Ordem de Monges Mi-Go: “Para criar medo, mostre um espelho.” E o Narrador faz sua penúltima “aparição” parafraseando a Alegoria da Caverna.

E agora chegamos no mais preocupante delírio de todos: a ideia de que as outras pessoas não tem importância. Seus sentimentos, suas necessidades.

Imagine uma caverna na qual quem está dentro nunca vê o mundo exterior. Ao invés disso, eles veem sombras do mundo externo projetadas na parede da caverna. O mundo que eles veem nas sombras não é o mundo real, mas aquilo é o real para eles. Se você os mostrar o mundo como ele realmente é, eles o rejeitariam por o considerarem incompreensível.

Agora, e se ao invés de estar em uma caverna, você está no mundo exterior, mas não consegue enxergá-lo, pois não está prestando atenção. Pois você acredita que o mundo que você vê através de um prisma é o mundo real.

Mas há uma diferença. Enquanto na alegoria da caverna as pessoas eram reais e as sombras eram falsas, aqui as outras pessoas são as sombras. Seus rostos, suas vidas.

[Cena de uma garota usando seu smartphone para praticar bullying com alguém que ela conhece.]

Esse é o delírio dos narcisistas, que acreditam que apenas eles são reais. Os sentimentos deles são os únicos sentimentos que importam, pois as outras pessoas são apenas sombras. E sombras não sentem. Pois não são reais. Porém, e se todos vivessem nessa “caverna”? Então ninguém seria real. Nem mesmo você. [Pois você também seria apenas uma sombra para os outros narcisistas.]

A não ser que um dia você acordasse e saísse dessa caverna. O quão estranho o mundo pareceria depois de uma vida inteira enxergando apenas “sombras”?

No 11º episódio, o espectador é surpreendido com a Parte Doze (cujo título irei omitir), que começa sem narração, mas com letreiros.

No fim, qual é o som da verdade?

Ondas em uma praia, a risada de uma criança.

Ou talvez existam verdades conflitantes.

A verdade da mente, a verdade do coração.

Se todas as maçãs estão machucadas, então é a maçã intacta que é ruim, o homem são é que é louco.

Pois o normal é aquilo com o qual nove homens sábios podem concordar, deixando o décimo balançando com uma corda em seu pescoço.

E o Narrador, por fim, faz sua última participação.

Nos velhos tempos, homens loucos eram colocados em barcos e enviados ao mar. Eles deveriam ir em busca de sua sanidade perdida. Eles chamavam esses barcos de “navios de tolos.” E por muito tempo, achamos que nós éramos os sãos, deixados para trás em terra seca. Mas e se não formos? E se tanto tempo se passou, que esquecemos a verdade de que nós somos de fato os tolos, à deriva em um mar sem fim, fingindo ser… normais?

Comentários com Spoilers

Todas as ideias apresentadas acima convergem nos momentos finais do último episódio da temporada. A revelação de que David Haller se tornaria o grande vilão desse universo não é nada surpreendente pra quem conhece a origem do personagem Legion nos quadrinhos. Porém, a forma como ela é mostrada vai muito além do que os fãs poderiam imaginar.

A grande novidade é que a relação entre David e seu círculo social se torna semelhante a relação que muitas pessoas com distúrbios mentais tem com familiares e amigos. Quando o distúrbio mental leva alguém a ir contra as normas sociais, a tendência daqueles ao seu redor é tentar punir ou corrigir aquele comportamento. Isso apenas piora a situação e aumenta a distância entre uma pessoa enferma e aqueles que poderiam ajudá-la. Atitudes repressivas e, muitas vezes, violentas apenas ajudam o paciente a justificar para si próprio seu comportamento anti-social.

No caso de David e seus amigos, existem alguns agravantes. Antes de tentar conversar com ele sobre o futuro possível que ela visualizou, Syd tenta matá-lo. Posteriormente, ela e os demais só tentam conversar com ele depois de colocá-lo em uma jaula e ameaçar destruí-lo caso ele não coopere. Para piorar, eles fazem tudo isso sob a influência do abusador que é o grande responsável pelos distúrbios mentais de David em primeiro lugar. Se o Shadow King/Amahl Farouk (Navid Negahban) não tivesse se instalado como um parasita na mente do jovem mutante, talvez ele jamais teria desenvolvido esses distúrbios.

Isso não quer dizer que David seja apenas uma vítima inocente, como ele se considera. Em vários momentos, ele escolheu iludir a si próprio e aos outros sobre sua condição, chegando ao extremo de abusar psicologicamente e sexualmente de sua própria namorada. Enquanto seus amigos caem na armadilha do pânico moral, inclusive tentando julgá-lo por crimes que ainda não foram cometidos, David fica preso nas teias dos delírios narcisistas. Dado o abuso que sofreu, ele acredita que todos seus atos de violência são justificáveis e apenas a sua dor importa. Além disso, ele também acha que Syd apenas precisa de mais tempo para voltar a vê-lo como o herói que ele acha que é. E quando ele desiste dessa ilusão, só lhe resta se tornar o vilão que os outros veem nele. Em outras palavras, as atitudes negativas de David alimentam as atitudes negativas de seus amigos, e vice-versa, resultando em uma típica profecia autorrealizável.

Nessa entrevista, Noah Hawley fala um pouco sobre a natureza de seu vilão.

Isso não significa que David não possa voltar ou que no fim ele não vai encontrar o caminho de volta. Mas em algum nível, a série inteira é uma parábola sobre transtorno mental. A ideia de que David tentou se matar e foi para um hospital; e eles o consertaram e lhe deram seus remédios; e eles o deixaram sair e ele tomou os remédios por um tempo; e então ele decidiu que não precisava mais dos remédios e parou de tomá-los; e agora ele está nesse surto psicótico. Porém, ele substituiu a palavra “remédios” pela palavra “amor”. Ele percebeu que possuía uma história de amor e que o amor estava tornando-o uma pessoa melhor – uma pessoa mais sã e estável – e então ele começou a mentir e não ser consistente com a mulher que amava. Quando ele virou as costas para a história de amor, tudo começou a desmoronar.

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