Certezas


Na Bíblia Sagrada, o livro do Gênesis revela o que pra mim é um dos mais interessantes aspectos da natureza humana. No idílico Jardim do Éden, homem e mulher podem viver tranquilamente, em plena harmonia entre si e com a natureza. Não havia preocupações e viveriam para sempre. Havia apenas um limite: a árvore do conhecimento do bem e do mal. Uma vez que caem em tentação e provam do seu fruto, se tornam mortais e ficam cientes de suas vergonhas.

Percebe-se que a parábola representa o momento no qual obtemos o conhecimento das coisas, ou o nosso raciocínio, ou a nossa autoconsciência. Uma vez que possuímos esse conhecimento, somos castigados com o exílio e nos tornamos responsáveis pelo nosso próprio destino.

Notemos então o ponto de vista dos homens que escreveram essa parábola: para eles, o conhecimento do bem e do mal é algo que não deveríamos ter, e estaríamos melhor se fossemos tão inocentes quanto os animais; além disso, nossa mortalidade e a responsabilidade que temos sobre nossas vidas nos vieram como castigos (“Do suor do teu rosto comerás o teu pão, até que tornes à terra, porque dela foste tomado; porquanto és pó, e ao pó tornarás”).

Eis então o aspecto que acho tão interessante: como muitos hoje, os autores dessa obra invejam a simplicidade da vida dos animais, pois esses apenas comem, bebem, acasalam e morrem, sem aparentemente se preocupar com preceitos morais ou ter que tomar decisões complicadas. Para um maior efeito dramático, sempre digo que essa parábola revela a inveja que seus autores sentem dos cães.

Mas o que há de tão repulsivo no conhecimento? Talvez seja a complexidade. Quanto mais uma pessoa sabe, mais fatores ela deve levar em conta e menos detalhes ela pode se dar ao luxo de ignorar. É por isso que elas tentam se satisfazer com a menor quantidade possível de informação. Só querem saber o que for estritamente necessário para que uma decisão seja tomada.

Mas qual é o estritamente necessário? Quem o define? Na prática, o que acontece é que em determinado momento a pessoa fica satisfeita com o que sabe e acredita saber tudo o que ela precisa para tomar uma decisão ou formar uma opinião sobre um determinado assunto. E daí nasce uma certeza. Ela nasce quando morre a curiosidade, quando morre a vontade de saber mais. Mas talvez, ela também seja necessária. Se jamais disséssemos “chega” e continuássemos eternamente querendo saber mais, nenhuma decisão seria tomada.

Essa busca pelo conhecimento é potencialmente eterna, enquanto atitudes concretas precisam ser tomadas todos os dias. Minha resposta para isso é que decisões podem ser tomadas mesmo que não existam certezas envolvidas. Não se trata de se satisfazer com o que se sabe, mas sim de aceitar que temos que tomar nossas decisões com base em tudo o que sabemos até o momento, ao mesmo tempo que tentamos aprender cada vez mais. Temos então outra daquelas situações nas quais o ideal é encontrar um equilíbrio.

O que realmente me irrita em relação às certezas é a facilidade com a qual elas são formadas. “Eu sinto no meu coração que isso é verdade!”. Certezas são confortáveis e as pessoas irão fazer o máximo possível para chegar nelas. As coisas devem ser simples. Elas só querem saber quem está certo e quem está errado. Quem é do bem e quem é do mal. Quanto mais pontos de vista forem levados em conta, menos simples as coisas ficam e mais difícil é ter certeza de alguma coisa.

É claro que por mais que essa subjetividade me irrite, ela pode ter seu grau de razão. Quando uma pessoa diz que sente que algo é verdade, ainda que ela não esteja conscientemente levando em conta todas as sutilezas da situação, subconscientemente um cálculo extremamente complexo pode ter sido feito, e aquele sentimento, ou intuição, pode revelar uma verdade relativamente precisa. Ou não.

Essa intuição também pode ser fruto de um pensamento enviesado ou até mesmo de um preconceito. Dessa forma, dada a imprecisão do mecanismo da intuição, acredito que devemos sempre caminhar em busca do aperfeiçoamento dos nossos mecanismos de dedução à partir de fatos verificáveis.

Outra frase típica que indica que uma certeza acaba de ser formada é: “Não tem como isso ser mentira!” O que me preocupa aqui é que essa constatação é a base da técnica de propaganda chamada de Grande Mentira. O termo foi cunhado pelo próprio Hitler, e diz respeito à uma mentira tão grande e arrebatadora que ninguém jamais ousaria questioná-la, pois o cidadão comum partiria do pressuposto de que “ninguém jamais mentiria sobre uma coisa dessas”.

Outra forma de consolidar uma Grande Mentira é tê-la repetida à exaustão, pelas mais diversas fontes, pois “não tem como toda essas fontes estarem mentindo”. Essa e outras formas de propaganda utilizam da subjetividade inerente ao ser humano para criar determinadas certezas na população e manipulá-la como um meio para se atingir um fim. A própria temática dessa série de posts tenta desconstruir uma dessas técnicas de propaganda, a super-simplificação. Acredito que essa é umas das técnicas mais básicas de propaganda e é com base nela que muitas das outras podem ser aplicadas.

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