Crítica: Privacidade Hackeada

The Great Hack, EUA, 2019



Documentário mostra parte dos bastidores e dos detalhes do escândalo do uso de dados pela Cambridge Analytica

★★★★☆


Privacidade Hackeada serve tanto para o espectador que acompanhou no noticiário o desenrolar do escândalo do nefasto uso de dados pessoais pela Cambridge Analytica quanto para aquele que não sabe do que se trata. Para o primeiro, ele revela parte dos bastidores dos vazamentos, dos testemunhos e das publicações referentes ao caso. Para o segundo, ele funciona como um ótimo resumo e uma importante contextualização desses acontecimentos.

Para quem já conhece as curvas que a história fará, a narrativa pode parecer um tanto lenta e demasiadamente dependente de informações já publicadas nos jornais. Ainda assim, é interessante conhecer as experiências e os pontos de vista dos jornalistas e ativistas responsáveis pelas publicações. Em determinados momentos, é possível ver a reação de alguns deles diante de revelações feitas durante depoimentos transmitidos ao vivo.

Entretanto, a inclusão do aspecto humano nem sempre vai fundo o suficiente para se justificar. O roteiro passa de forma superficial por vários dos envolvidos até focar sua atenção na figura que pode ser considerada sua protagonista. Isso acaba inflando o tempo de duração do filme, que chega a quase duas horas, e exigindo um pouco mais de paciência do espectador. Talvez uma abordagem mais na linha do documentário Citizenfour seria mais adequada, o que exigiria que o escopo da produção fosse reduzido ou que ela se tornasse uma minissérie.

A protagonista em questão é a principal informante do caso, a ex-diretora da Cambridge Analytica Brittany Kaiser, que é apresentada de forma sincera e razoavelmente equilibrada. As necessidades financeiras de sua família e a vontade de fazer parte de um trabalho no qual poderia ver os resultados concretos de suas ações a levaram a se dedicar à empresa e ao seu carismático CEO Alexander Nix sem se preocupar com as implicações éticas e morais dos serviços que estavam prestando. Empolgada com o emprego dos seus sonhos, ela (conscientemente ou não) ficou cega para as óbvias repercussões que seu trabalho teria.

E essas repercussões são inéditas na História da humanidade. Para começar, o modelo de negócios da Cambridge Analytica era baseado na coleta de dados pessoais de bilhões de pessoas ao redor do mundo. Usando o Facebook como plataforma e quizzes de personalidade como ferramenta, a empresa montou uma das mais ricas e detalhadas bases de dados sobre o comportamento humano da qual se tem notícia. Por mais que o usuário precisasse autorizar o compartilhamento das informações, ele não tinha ideia de onde elas seriam armazenadas (ou para quem seriam vendidas) e para quais fins seriam utilizadas.

Uma ferramenta como essa dá a seu portador algo que nenhum governo (ou outros grupos de interesse) jamais teve: poder direto sobre os pontos de vista de milhões ou bilhões de pessoas. Isso, essencialmente, quebra a roda da democracia. Se a vontade do povo se torna passível de manipulação sistemática por um pequeno grupo de pessoas, o sistema político está condenado a voltar para modelos autocráticos ou, no mínimo, oligárquicos.

Os principais casos de sucesso da empresa são a eleição de Donald Trump como presidente dos EUA e a vitória do “sim” no referendo sobre o Brexit no Reino Unido, além do notório caso da manipulação das eleições em Trindade e Tobago. Independente dos lados beneficiados pelo uso dessas tecnologias, a questão realmente preocupante é que o futuro de centenas de milhões de pessoas foi definido com base em campanhas de desinformação promovidas por meio de técnicas de guerra psicológica.

É interessante notar que essa nova realidade põe em xeque aquilo que chamamos de livre arbítrio e condiz com as conclusões às quais os criadores da série Westworld chegaram durante suas pesquisas (para mais detalhes, veja esse post). Em determinado ponto da série (que também lida com a coleta de dados de usuários que não estão cientes disso), uma inteligência artificial responsável por copiar a personalidade de pessoas reais explica parte de sua metodologia: “As cópias não falharam por serem muito simples, mas por serem muito complexas. A verdade é que um ser humano é apenas um breve algoritmo. Uma vez que você os conhece, seus comportamentos são bem previsíveis.”

Assim como a criação da ciberarma conhecida como Stuxnet deu origem a um novo tipo de guerra (como mostrado no documentário Zero Days, sobre o qual comentei aqui), as tecnologias desenvolvidas pela Cambridge Analytica originaram um novo tipo de propaganda: anúncios produzidos sob medida e cirurgicamente direcionados para eleitores de acordo com os traços de suas personalidades; projetados para provocar a exata reação emocional pela qual o cliente está pagando; que “hackeiam” as emoções humanas e o nosso processo de tomada de decisões.

Os desafios que surgem com essa nova realidade são inéditos e colocam a civilização em território inexplorado. A solidez e a resiliência de instituições montadas ao longo dos últimos séculos serão testadas diante de forças que tentam afastar a racionalidade e fazer a humanidade retornar a um estado puramente instintivo. Até que ponto o “sistema imunológico” dos nossos tecidos sociais estão prontos para combater essa infecção?

O formato e a distribuição via Netflix tornam Privacidade Hackeada o veículo perfeito para que essas informações e questionamentos cheguem ao público de forma mais organizada e menos diluída. Resta saber até que ponto a população realmente se importa com a sua privacidade sendo violada dessa forma e com os processos eleitorais se tornando jogos de cartas marcadas. Ou se ela entende o que está perdendo com isso.

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