Crítica: Judas e o Messias Negro

Judas and The Black Messiah, EUA, 2021



Thriller conta uma história real por meio de uma narrativa marcada pela paixão e pela intensidade

★★★★☆


A história de Judas e o Messias Negro poderia muito bem ter sido adaptada como um melodrama trágico e convencional, repleto de clichês e simplificações. Porém, o diretor Shaka King faz questão de abraçar as complexidades e ambiguidades da trama, mostrando as muitas facetas de um movimento político que era necessário, inspirador e imperfeito. Além disso, King também faz da história um thriller político com elementos de espionagem e de romance, destacando a intensidade daqueles eventos e a ousadia de seus protagonistas.

A produção já se distancia do convencional ao escolher o ponto de vista do informante do FBI Bill O’Neal (LaKeith Stanfield) para contar a história da luta e do assassinato do ativista Fred Hampton (Daniel Kaluuya), um inspirador líder comunitário e presidente da filial do Partido dos Panteras Negras na cidade de Chicago. Os dois homens são representados de forma honesta e multifacetada, apesar de não ficar claro ao longo da narrativa que Hampton está entre seus dezoito e vinte e um anos de idade e Bill entre seus dezessete e vinte.

Foi aos dezessete, e já com uma considerável ficha criminal, que Bill foi recrutado pelo agente do FBI Roy Mitchell (Jesse Plemons) para se infiltrar no movimento dos Panteras Negras e manter a agência informada sobre seus membros. A relutância apresentada por Bill não é apenas aquela típica relutância dos agentes infiltrados, já que era carregada por aspectos mais pessoais. Por um lado, o agente Mitchell havia se tornado uma espécie de figura paterna para o jovem, resolvendo seus problemas com a lei e até lhe incluindo no convívio com sua família. Por outro lado, era inevitável que ele se identificasse com o movimento e passasse a acreditar, pelo menos parcialmente, nas ideias de Hampton.

Além das personalidades de Hampton e Bill, Judas e o Messias Negro também examina os pontos de vista dos movimentos sociais e das agências de segurança. Para começar, o FBI de J. Edgar Hoover (Martin Sheen) é mostrado em seu pior momento, com um diretor geral obcecado com os movimentos de esquerda, seja o dos Panteras Negras ou o dos direitos civis. No filme Os 7 de Chicago (crítica aqui), que mostra Hampton dando apoio a Bobby Seale, já havia ficado claro que o status quo estava disposto a recorrer às artimanhas mais sujas e criminosas para evitar as mudanças que estavam sendo reivindicadas.

O que os dois filmes deixam claro é que forças políticas e policiais se viam (e se veem) no direito de agir de forma criminosa para defender uma visão de mundo que exclui a diversidade de pessoas e de ideias. Para eles, existe um única forma certa de qualquer pessoa se comportar, e quem não se encaixa nesse padrão (e nem se cala em sua marginalização), não merece o direito de existir. No caso de Hampton, o jovem ativista é considerado uma ameaça simplesmente porque sua combinação de discursos inflamados e programas sociais estava sendo muito bem-sucedida em organizar a comunidade negra em torno de um programa político que realmente os representava e que poderia ter repercussões eleitorais.

Por outro lado, o FBI fazia uso dos aspectos mais violentos dos discursos e das ações do movimento dos Panteras Negras para caracterizá-lo como uma organização terrorista, o que facilitava, diante dos olhos do público, a justificação da violência utilizada contra ele. Hampton era contra a utilização de violência, mas seus próprios discursos pareciam dizer o contrário, o que é apontado em determinado ponto de Judas e o Messias Negro.

Além disso, o filme aponta a fragilidade de um movimento social que é centralizado em uma única pessoa e não possui uma visão de continuidade sem ela. Hampton foi assassinado, mas havia muitos outras formas dele se tornar indisponível, o que não deveria ser um problema. Em determinado ponto, os membros do movimento estão tão focados em evitar a prisão do líder que se esquecem de pensar na comunidade que deveria ser a prioridade deles. Esse é um tipo de problema que ainda ocorre em muitos movimentos políticos, limitando significativamente o alcance e a eficácia deles.

Judas e o Messias Negro também pode ser considerado um filme de espionagem, já que as técnicas empregadas por Bill e Mitchell são comuns tanto no gênero quanto nas operações da vida real. Isso faz com que a trama lembre filmes como Infiltrado na Klan e Imperium: Resistência Sem Líder, nos quais forças policiais infiltram agentes em grupos de supremacistas brancos. No caso de Imperium, é possível ver que a agente do FBI responsável pelo infiltrado utiliza métodos semelhantes aos de Mitchell para gerenciá-lo, apesar dele ser mais experiente e ter sido recrutado de forma bem diferente da de Bill.

Apesar de tudo isso, o grande espetáculo de Judas e o Messias Negro está nas atuações de Stanfield e Kaluuya, que incluem todas as nuances e toda a intensidade que a história merece. O Hampton de Kaluuya funciona tanto como um orador de energia contagiante quanto como um jovem tímido e apaixonado, explorando a versatilidade que ele já havia mostrado em filmes como Corra! (crítica aqui) e As Viúvas (crítica aqui). Stanfield, por sua vez, consegue estampar no rosto tanto o desespero quanto a petulância de um jovem criminoso preso em uma situação cujas repercussões ele ainda não consegue entender. São duas performances dignas de aclamação e premiação.

Nesse aspecto, também merecem destaque as atuações sutis e marcantes de Jesse Plemons e de Dominique Fishback, que também foi um dos destaques em Power (crítica aqui). É graças a Fishback que os aspectos de romance da trama realmente funcionam, apresentando uma performance que também seria digna de ser uma das protagonistas da produção.

Judas e o Messias Negro conta de forma intensa e poderosa uma história que também é intensa e poderosa. O movimento dos Panteras Negras pode não ter atingido exatamente os objetivos que se propôs a atingir, mas conseguiu prover histórias de luta e resistência que seguem inspirando novos movimentos e novas representações políticas. É por meio de filmes como esse que a figura mítica de Fred Hampton pode seguir provendo sabedoria e aprendizado, inclusive sobre os homens que trabalharam para interromper sua curta trajetória.

 

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