Crítica: Hereditário

Hereditary, EUA, 2018



Terror ousa e quebra regras do gênero para prover uma experiência macabra e horripilante

★★★★☆


Hereditário é mais um exemplar da recente onda de filmes de terror considerados mais “cerebrais”. A principal implicação disso é que o público fica dividido entre quem o ama e quem o odeia, com uma minoria achando-o apenas “ok”. Esse também é o caso de filmes como A Bruxa, O Babadook e mesmo o quase convencional Corrente do Mal (comentário aqui). Portanto, pode-se dizer que há um público-alvo específico para essa produção. O que todos esses filmes têm em comum é que eles exigem uma grande quantidade de empatia do espectador para que realmente funcionem.

Muitos vão dizer que a empatia é necessária para se assistir qualquer filme, pois, para embarcar na história, o mínimo que se espera é que as pessoas se identifiquem com os personagens e se coloquem no lugar deles. Porém, existe uma parte do público que consegue assistir filmes sem realmente se conectar emocionalmente com o que se passa na tela, limitando-se a “analisar” ou reagir de forma mais superficial aos eventos mostrados. Obviamente, isso não está errado ou “invalida” a pessoa como espectador (como se isso fosse possível). O problema é que o hype gerado por filmes como os citados acima acaba atraindo também essas pessoas, que vão assisti-los com altas expectativas e acabam se decepcionando.

Dito isso, para a parte do público que se encaixa no perfil mais empático, Hereditário é um dos pesadelos mais angustiantes já trazidos para a tela do cinema. Enquanto o ato inicial dá sinais de que vamos presenciar um terror que corre o risco de repetir filmes como Quando as Luzes se Apagam (crítica aqui) ou A Entidade, o que se segue é uma série de surpresas que estabelecem um clima pesado de dor e sofrimento no seio familiar. Mesmo antes dos aspectos sobrenaturais entrarem explicitamente em cena, os traumas e ressentimentos que assombram aquela família já colocam essa produção em um outro patamar. O diretor e escritor Ari Aster faz escolhas ousadas e o resultado pode se tornar um novo clássico do gênero.

Os Graham ainda estão lidando com uma morte na família quando coisas estranhas começam a acontecer. A mãe Annie (Toni Collette) e o pai Steve (Gabriel Byrne) fazem o que podem para consolar os filhos Peter (Alex Wolff) e Charlie (Milly Shapiro). Entretanto, o que ocorre a seguir são eventos que vão lentamente desfazendo a psique de Annie e desafiando o espectador a continuar olhando. À medida ela vai revelando detalhes sobre seu passado e fazendo novas descobertas, uma tensão quase insuportável se estabelece, com o fator sobrenatural sendo apenas uma preocupação a mais para o espectador.

Enquanto o terror psicológico é a principal atração de Hereditário, outras modalidades do gênero são muito bem exploradas por Aster, ainda que ele não se apoie nelas para compor sua obra. Além dos ocasionais sustos causados por um simples estalar de língua, o diretor também faz um ótimo uso da escuridão como fonte de terror, igualando ou mesmo superando Quando as Luzes se Apagam, que é um filme inteiramente construído sobre esse recurso. Mas a tensão aqui é tão alta que chega a ser um alívio quando o ato final chega e revela de forma mais explícita o que realmente está acontecendo. Alguns dos detalhes desse desfecho podem até ser um pouco demais para parte do público, a ponto de cair no comicamente macabro, mas eles são importantes para um filme inspirado em clássicos como O Exorcista ou O Bebê de Rosemary.

Algo semelhante acontece no desfecho de A Bruxa (comentário aqui), e essa não é a única semelhança entre os dois filmes. Além de terem um produtor em comum, as duas produções se baseiam em medos de origem religiosa que fazem parte de muitas culturas no mundo. Para evangélicos ou católicos mais fervorosos, esses são filmes que materializam os motivos pelos quais eles rezam antes de dormir: entidades maléficas que eles consideram parcialmente ou inteiramente responsáveis pelos problemas que os afligem na vida real. Portanto, essas são obras que podem entrincheirar pessoas mais impressionáveis e torná-las mais dependentes de suas crenças místicas. Ou seja, esses filmes não são para todo mundo.

Outros destaques da produção são a excelência técnica tanto do diretor Ari Aster quanto da atriz Toni Collette. Em relação a Aster, o que mais me chamou a atenção foi o posicionamento e a movimentação de sua câmera, que por si só já deixa o espectador tenso. O diretor brinca com as expectativas do público ao fazer enquadramentos típicos de momentos de susto para apenas mover a câmera ao redor do personagem e revelar que não há nada lá. Em outros, ele apenas coloca algo assustador em um canto escuro do quarto, apenas para revelar que aquilo não passa de uma cadeira com um casaco ou algo parecido. Quando realmente há algo lá, temos mais um momento no qual um medo irracional do espectador, como a impressão de ter algo se escondendo no escuro, se materializa na tela do cinema.

Já Toni Collette impressiona com uma atuação tão tocante quanto visceral de uma mulher que está no limite de sua sanidade. Ela luta para se manter lúcida enquanto lida com as catástrofes sem sentido que a atingem, com seus traumas do passado, com as descobertas que ela faz e com os eventos sobrenaturais que presencia. A atriz tem sucesso ao passar a impressão de que aquela é uma mulher real e traumatizada que está passando por um inexplicável e constante pesadelo. Já li várias críticas e comentários dizendo que a atriz merece ser lembrada por essa atuação na próxima temporada de premiações. E não é pra menos.

Com 2 horas e 7 minutos de duração, o espectador passa a desejar que o filme acabe logo não porque ele se arraste ou fique previsível, mas sim porque uma vez que o pesadelo tem início, ele não para de piorar. Esse é o tipo de filme no qual você vai ficar pensando por dias ou até semanas depois de assisti-lo. Com Hereditário, o diretor Ari Aster mostra que não está de brincadeira e escreve seu nome do hall da fama do terror macabro.

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