Crítica: Doutor Sono

Doctor Sleep, EUA, 2019



Filme funciona mais como homenagem do que como continuação do clássico de Stanley Kubrick

★★★☆☆


A abordagem adotada pelo diretor e roteirista Mike Flanagan em Doutor Sono homenageia o trabalho de Stanley Kubrick enquanto respeita a história de Stephen King. O escritor nunca gostou da forma como O Iluminado foi adaptado para o cinema, pois Kubrick focou mais nos aspectos artísticos e de terror do que nos dramas humanos da família Torrance. Flanagan corrige isso ao fazer um mergulho na vida de Danny Torrance (Ewan McGregor), mostrando como os eventos do primeiro filme afetaram seu desenvolvimento tanto meses quanto décadas depois.

Infelizmente, isso é mostrado de forma extremamente expositiva e arrastada no primeiro ato, junto com a apresentação dos novos personagens. A narrativa puxa para si a responsabilidade de explicar detalhadamente certos aspectos do filme anterior e estabelecer um alicerce sólido sobre o qual a nova história será contada. Isso explica a excessiva duração de 2 horas e 30 minutos, mas pelo menos evita-se o mesmo erro cometido por Cemitério Maldito (crítica aqui), um filme que parece estar sempre com pressa para chegar na cena seguinte.

Surpreendentemente, o restante de Doutor Sono tem uma estrutura muito similar à de um típico filme de super-heróis (!), no melhor estilo X-Men: dois grupos de pessoas com habilidades especiais (os “iluminados”) se enfrentam em uma série de batalhas mortais, que se passam tanto no mundo real quanto no “plano astral” (ver Legion) e deixam mortos e feridos pelo caminho. Se o espectador não embarcar no drama e nos elementos de terror, ele ainda pode se entreter com o suspense e a ação.

E se todo filme de super-heróis é apenas tão bom quanto o seu vilão, Doutor Sono não decepciona. Rosie The Hat (Rebecca Ferguson) lidera um grupo de terríveis seres que consomem o “vapor” liberado pelos iluminados quando eles morrem, ou quando sentem dor e medo. A vilã é extremamente engenhosa e diabólica, mas, ainda assim, é ela quem parece estar em apuros durante a maior parte do filme.

Isso porque o time dos mocinhos conta com Abra Stone (Kyliegh Curran), uma poderosíssima iluminada (ou “telepata”) de 13 anos que está apenas descobrindo suas habilidades. Seu poder é tão desproporcional que ela supera facilmente a experiente Rosie em mais de uma ocasião, e é a vilã que tem que ir além dos próprios limites para superar a garota. Em uma história recorrente, Stone apresentaria para os escritores o mesmo problema que Superman: para ela ser realmente desafiada, seus vilões precisariam ser absurdamente inteligentes (como Lex Luthor) ou poderosos (como Apocalipse).

Mas Flanagan também encontra tempo para explorar os temas levantados por King. Além da luta de Danny contra a ameaça do alcoolismo e os traumas de seu violento passado, a história lida de diversas formas com a ansiedade causada pela nossa mortalidade. Rosie e seus companheiros “consomem” os iluminados para poderem estender seus tempos de vida, mas a crescente escassez das pessoas especiais e o aparecimento de Stone fazem com que eles tenham que encarar a possibilidade do fim da própria existência pela primeira vez em séculos. De repente, eles se lembram de que também são mortais.

Já Danny é o “Doutor Sono” do título devido a sua atuação como auxiliar de enfermagem em uma instituição com pacientes terminais. Com a ajuda do gato Azzie, que consegue prever quando alguém está prestes a morrer (e foi inspirado no caso real do gato Oscar), ele usa suas habilidades paranormais para consolar os pacientes em seus momentos finais. Assim como muitas religiões e outras crenças místicas, Danny tranquiliza as pessoas ao lhes garantir que há algo do outro lado, que a morte não representa o fim de suas jornadas.

Em suma, Doutor Sono parece ser mais uma homenagem do que uma continuação de O Iluminado. De alguma forma, o filme deixa a sensação de que não se passa no mesmo no universo do clássico de Kubrick, mas sim em um universo no qual o primeiro filme também é um grande sucesso do cinema. Essa sensação é reforçada quando se vê novos atores interpretando os personagens centrais do outro filme, o que dá um ar de paródia a certas cenas. Tentar rejuvenescer Jack Nicholson seria muito arriscado, mas escalar um novo ator (Henry Thomas) também não funcionou muito bem.

O mesmo vale para a recriação do Hotel Overlook. Os cenários beiram a perfeição, mas a forma como ele é usado não tem a fluidez ou a naturalidade que se poderia esperar. Seu uso aqui lembra sua utilização na aventura Jogador Nº 1 (crítica aqui), focando-se mais nas referências visuais do que em contar uma nova história naquele mesmo ambiente. O que se tenta fazer é dar um final definitivo à história que foi contada em O Iluminado.

Todos esses aspectos fazem com que Doutor Sono não seja um filme indispensável, mas sim uma interessante e curiosa aventura no universo de O Iluminado. Ao incluir tantos elementos, nenhum deles se sobressai a ponto de ficar com o espectador após o final da sessão. O que a narrativa faz muito bem é expandir a mitologia desse universo e deixar aberta a possibilidade de mais uma continuação, que também seria desnecessária.

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