As Identidades do Universo


Em seu mais recente livro, intitulado Astrofísica para Apressados, o autor Neil DeGrasse Tyson apresenta alguns interessantes fatos sobre o hidrogênio:

Com um único próton em seu núcleo, o hidrogênio é o mais leve e o mais simples dos elementos, criado inteiramente durante o Big Bang. Dos 94 elementos que ocorrem naturalmente, o hidrogênio representa mais de dois terços dos átomos que formam o corpo humano, e mais de 90 porcento de todos os átomos no cosmos, em todas as escalas, até o nível do Sistema Solar. O hidrogênio no núcleo do gigantesco planeta Júpiter está sob tanta pressão que se comporta mais como um metal condutor do que como um gás, criando o mais forte campo magnético dentre os planetas.

O autor também aponta para o estranho relacionamento que o hidrogênio tem com o oxigênio: enquanto um é um gás explosivo e o outro é um gás fundamental no processo de combustão, juntos eles compõem as moléculas da água, uma das substâncias fundamentais para vida como a conhecemos. Também são os átomos de hidrogênio colidindo a altíssimas velocidades que causam o processo de fusão nuclear que dá origem à toda energia liberada pelo Sol, juntando-se e formando o elemento hélio.

Mas todas as formas de vida que conhecemos são baseadas em um outro tipo de átomo: o de carbono. Notório por sua versatilidade para se combinar com outros elementos, ele também é a base do grafite usado como lubrificante seco e dos diamantes usados como artigos de luxo, sem contar suas aplicações como material escolar ou freios de alta performance. Não é à toa que:

O elemento carbono pode ser encontrado em mais tipos de moléculas do que todos os outros tipos combinados. Dada a abundância de carbono no cosmos – forjado nos núcleos das estrelas, agitado até suas superfícies e liberados copiosamente na galáxia – não existe um melhor elemento no qual se basear a química e a diversidade da vida.

Indo além, o autor é categórico:

Os elementos químicos do Universo são forjados nas fornalhas de estrelas de alta massa, que terminam suas vidas em explosões titânicas, enriquecendo suas galáxias anfitriãs com o arsenal da vida como a conhecemos. O resultado? Os quatro mais comuns e quimicamente ativos elementos do Universo – hidrogênio, oxigênio, carbono e nitrogênio – são os quatro mais comuns elementos da vida na Terra, com o carbono servindo como o fundamento da bioquímica.

Nós não apenas vivemos no Universo. O Universo vive dentro de nós.

Chegamos a todas essas conclusões depois de milhares de anos de evolução científica, o que me leva a questionar: por que diabos o Universo está tão preocupado em entender ele mesmo?

O Fantasma de Rachael

Diante dessas informações sobre o Universo do qual fazemos parte, ficamos impressionados com nossa própria consciência. Nós somos a resposta para a pergunta: “se uma pedra pudesse pensar sobre ela mesma, o que ela pensaria?” O caminho percorrido por amontoados de matéria bruta até o ponto no qual essa matéria consiga refletir sobre ela mesma ainda é, em grande parte, um mistério para a humanidade. Não entendemos muito bem como nossa imaginação funciona, mas isso não impede que a exercitemos ao pensar nas implicações de fabricarmos “objetos conscientes”.

Em Blade Runner: O Caçador de Andróides, a personagem Rachael (Sean Young) tem um doloroso momento de descoberta quando lhe é revelado que ela é um replicante, um ser humano artificial criado pela Tyrell Corporation para ser usado como mão-de-obra barata em colônias fora do planeta Terra. Essa revelação a machuca menos pelo aspecto físico e mais pelo emocional.

Ela fica sabendo que todas as memórias que tem de sua infância, adolescência e vida adulta foram vividas por uma outra pessoa, de quem a corporação “copiou” esses momentos a fim de torná-la mais realista. De certa forma, sua identidade é uma mentira, uma fabricação de alguns cientistas. Mas isso a torna menos real? Afinal, nossas identidades também não são apenas informações codificadas em nossos cérebros? O fato de Rachael não ter fisicamente passado por tudo o que ela acredita ter vivido diminui o impacto daquelas memórias sobre a pessoa que ela é?

Em determinado ponto da obra na qual Blade Runner é baseado (Andróides Sonham com Ovelhas Elétricas?, de Philip K. Dick), dois caçadores de androides passam a suspeitar um do outro, incapazes de facilmente identificar se o parceiro é ou não um ser humano artificial. Se não conseguimos fazer essa diferenciação (via Teste de Turing ou algo que o valha), ela realmente importa?

Mais que isso, uma consciência artificial não deixaria de ser uma consequência dos processos naturais que tiveram início no Big Bang. Se a inteligência que emergiu naturalmente depois de bilhões de anos de evolução conseguisse emular a própria capacidade de pensamento, isso não seria nenhuma violação das leis naturais. O fato de que definimos a palavra “artificial” como “produzido pela mão do homem, não pela natureza” apenas expõe nossas tendências egocêntricas ao nos considerarmos seres superiores ou, pelo menos, separados da natureza da qual fazemos parte.

Mesmo com nossas consciências “naturais”, podemos ter as mesmas dúvidas e inseguranças que Rachael. Em busca de respostas, criamos estórias, filosofias e analogias como a do fantasma na máquina, ou a sala trancada, ou mesmo o elusivo conceito de eternidade. No fim das contas, não se trata de uma questão de “qual” é a nossa identidade, mas sim do “que” ela é.

A Condição Humana

Em Persona (lançado no Brasil com o equivocado título Quando Duas Mulheres Pecam), a atriz de teatro Elisabet Vogler (Liv Ullmann) e a enfermeira Alma (Bibi Andersson) começam a ter suas identidades unificadas quando se isolam em uma casa à beira-mar. Apesar de aparentemente saudável, a atriz está há várias semanas sem dizer uma única palavra e se recusando a trabalhar. Aberta a diversas interpretações, uma das principais temáticas dessa obra é a fuga de si próprio, seja da identidade imposta por pressões sociais (no caso de Vogler) ou da auto-imagem prejudicada por uma baixa auto-estima (no caso de Alma).

Essa premissa dá espaço para inspirados e poéticos monólogos que, de uma forma ou de outra, tratam da condição humana. Em um deles, a doutora (Margaretha Krook) responsável pelo caso de Vogler abusa do terror existencial:

Sim, eu entendo. O irremediável sonho de ser – não parecer ser, mas ser. A cada pequeno momento, alerta. A diferença entre o que você é com os outros e o que você é sozinha. A vertigem e a constante vontade de ser exposta, de ser vista por dentro, talvez até de ser evaporada. Cada inflexão e cada gesto uma mentira, cada sorriso uma careta. Suicídio? Não, vulgar demais. Mas você pode se recusar a se mexer, se recusar a falar, para que não tenha que mentir.

Você pode se fechar. E então não precisará interpretar nenhum papel ou fazer gestos errados. Ou foi o que você pensou. Mas a realidade é diabólica. Seu esconderijo não é completamente isolado. A vida faz cócegas do lado de fora e você é obrigada a reagir. Ninguém pergunta se é verdade ou mentira, se é genuíno ou apenas uma farsa. Tais coisas só importam no teatro, e talvez nem lá.

Eu entendo porque você não fala, porque não se move, porque criou esse papel para si própria por pura apatia. Eu entendo. Eu admiro. Você deve permanecer nesse papel até ele acabar, até ele perder o interesse para você. Então você poderá abandoná-lo, assim como abandonou seus outros papéis um por um.

Enquanto Vogler tenta uma fuga quase irracional dos papéis que lhe são reservados na vida, os protagonistas de A Doce Vida e de Era Uma Vez Eu, Verônica buscam ativamente entender o mundo e o papel deles nele. Eles tentam se tornar a pessoa que sempre acharam que seriam, ou pelo menos uma pessoa que faça sentido diante de seus anseios pessoais e do mundo ao seu redor. Os moldes que a sociedade lhes reservam não são satisfatórios, e eles buscam saídas não convencionais. O protagonista de A Doce Vida recebe o seguinte conselho:

Não ache que segurança é ficar trancado dentro de casa. Não faça o que eu fiz. Eu sou sério demais para ser um amador, mas não o suficiente para ser um profissional. Uma vida mais miserável é melhor, acredite, do que uma existência protegida pela sociedade organizada onde tudo é calculado, tudo é perfeito.

Mas até que ponto essa “vida miserável” é uma escapatória? Por quanto tempo ela poderá ser considerada anormal antes de se tornar o novo normal, do qual alguma outra pessoa irá tentar escapar? E que longo caminho esses átomos percorreram dos centros das estrelas até esse angustiante estado de ansiedade?

Perspectivas

No último capítulo de Astrofísica para Apressados, o autor manifesta sua surpresa ao receber uma mensagem de um professor de Psicologia especializado em “coisas que fazem as pessoas se sentirem insignificantes”. O estudioso pretendia fazer um questionário do tipo “antes e depois” com os visitantes da exposição Passaporte para o Universo, no Planetário Hayden, a fim de avaliar variações na “profundidade da depressão” deles, já que ele mesmo jamais havia se sentido tão pequeno e insignificante como quando visitou o evento.

Como pode? Toda vez que vejo uma exibição espacial (e outras que produzimos), me sinto vivo e espirituoso e conectado. Também me sinto grande, sabendo que são as atividades nos 1,3 quilos do cérebro humano que nos permitem entender nosso lugar no Universo.

Sim, como pode? A perspectiva cósmica é capaz de destruir quaisquer ilusões de grandeza que uma pessoa possa ter. Em um instante, ela sabe tudo o que precisa saber sobre o mundo e talvez sobre ela mesma, e no próximo ela entende que o gigantesco planeta no qual está não passa de uma pequena pedrinha no meio de trilhões de outras. Se antes ela sabia que sua própria história é apenas uma de muitas em um planeta com bilhões de habitantes, agora ela sabe que toda a história de sua espécie, do surgimento à extinção, provavelmente será muito menos que um piscar de olhos na escala temporal do Universo conhecido.

Ainda que fique fascinada, ela precisa aceitar que as distâncias existentes no espaço sideral tornam proibitivas quaisquer possibilidades de viajarmos para outros mundos, ou conhecermos outras civilizações. Nós não apenas estamos em um cantinho do Universo, mas também estamos confinados a ele. As diferenças entre as várias partes da superfície da “pedrinha” na qual estamos, que chamamos de ilhas, ou países, ou continentes, se tornam tão irrisórias.

Seja lá quais sejam os aspectos da vida de uma pessoa que ela reconheça como sua identidade (sua família, seu país, sua religião, seu time do coração, seus filmes e músicas favoritos, seu emprego, seu carro, sua casa, etc.), a maioria deles parecerá pequeno e irrelevante diante da grandiosidade de um Universo que se estende por quantidades de tempo e espaço que mal conseguimos compreender.

Mas como o autor pode se sentir grande diante de tamanha imensidão? Talvez, quando olha pras estrelas, ele não veja objetos gigantes e inalcançáveis que jamais verá de perto, mas sim objetos grandes e inalcançáveis dos quais ele mesmo faz parte. Talvez, ele já tenha “ido” a um desses lugares. Se os átomos de hidrogênio que compõem mais de dois terços de nossos corpos surgiram ainda durante o Big Bang, quais fantásticos caminhos eles já traçaram? De quantas estrelas já fizeram parte? De quantos planetas? De quantas outras formas de vida?

No fim das contas, as estrelas que vemos nos céus também fazem parte da nossa identidade. Essa perspectiva dá um novo significado à epígrafe que a escritora Hilda Hilst colocou em sua obra Tu Não Te Moves de Ti:

Para onde vão os trens meu pai?
Para Mahal, Tamí, para Camirí, espaços
no mapa, e depois o pai ria: também
para lugar algum meu filho, tu podes
ir e ainda que se mova o trem
tu não te moves de ti.

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